Você é médico e tem um consultório. Recentemente, você leu um artigo publicado no JAMA dizendo que um certo evento adverso grave de uma certa droga ocorre apenas em um a cada milhão de pacientes que usam a droga. Na semana seguinte, você começa a prescrever a droga para os seus pacientes no seu consultório. Você prescreve ela para cerca de 20 pacientes por semana. Logo na primeira semana, um dos 20 pacientes teve o tal evento adverso grave. Na segunda semana, mais um. E, na terceira, mais um.

Como você reage a isso? Algumas opções:

(1) um artigo publicado no JAMA é a CIÊNCIA! O que eu vejo na minha prática clínica é uma mera anedota. O artigo foi revisado minuciosamente por uma equipe dos melhores especialistas antes de ser publicado. Eu não sou um daqueles NEGACIONISTAS! Acabei de checar no Google o IMPACT FACTOR do JAMA e é realmente muito alto! Sem preocupações aqui, continuo prescrevendo.

(2) Porcaria de artigo, obviamente está errado.


Se você respondeu (1), eu não quero ser seu paciente nem vou recomendar você para ninguém. Porém, se você responde imediatamente (2) sem pensar, eu também não estou feliz com a sua reação. De fato, não é difícil de acreditar que um artigo no JAMA seja uma porcaria mesmo, a tal “revisão minuciosa por uma equipe dos melhores especialistas” é uma fantasia de quem não sabe como peer-review funciona. Ninguém vai pegar os datasets, checar autenticidade, refazer análises, considerar análises alternativas. Muitas vezes erros óbvios em tabelas passam despercebidos. Vários tipos de conflitos de interesses podem influenciar o que é publicado ou não. Mas, apesar disso tudo, um artigo publicado numa boa revista merece uma certa credibilidade e não deve ser descartado imediatamente antes que sejam consideradas alternativas.

Vejamos algumas teorias sobre o que pode estar acontecendo. Antes de mais nada, observo que “coincidência” não é explicação plausível aqui, é praticamente impossível observar 3 eventos numa amostra aleatória de 60 se a incidência verdadeira for de um em cada milhão (a probabilidade de se observar ao menos 3 eventos numa amostra de 60 com uma taxa real de incidência de um em cada milhão é de cerca de um em 29 trilhões). Vejamos algumas opções para compatibilizar a sua observação com o artigo publicado no JAMA.

(a) Esse evento adverso grave não tem nada a ver com a droga, na verdade ele já vinha acontecendo com uma certa frequência, mas você nunca prestou atenção nisso antes de começar a preescrever a droga.

(b) Esse evento adverso grave não tem nada a ver com a droga; vem aumentando recentemente na população por algum outro motivo e coincidiu de isso acontecer na mesma época em que você começou a prescrever a droga.

(sim, esse (b) não parece tão plausível, mas dependendo do caso é bom ao menos ter essa hipótese em mente)

(c) A droga que os seus pacientes estão comprando vem de um lote estragado, tem algum problema de controle de qualidade.

(d) A incidência de um em cada milhão é correta para a população em geral, mas os seus pacientes não são uma amostra aleatória da população em geral. Os pacientes que te procuram são mais propensos a ter certas características, devem ser pensados como estando sendo sorteados de alguma subpopulação da população em geral. Talvez nessa subpopulação, com essas características específicas, o evento adverso seja bem mais comum mesmo.

Para entender o que está acontecendo será necessário refletir sobre possibilidades como essas e buscar mais informações. Se a resposta for (a) ou (b), você pode continuar prescrevendo sem problemas. Se for (c), você precisa indicar para os seus pacientes um lugar melhor para comprar a droga. Finalmente, se for (d), embora o artigo no JAMA esteja certo, você deve considerar a possibilidade de parar de prescrever a droga. Não importa a incidência de evento adverso na população em geral, importa a incidência na subpopulação de onde os seus pacientes saem.

Enquanto você não entende direito o que está acontecendo, no entanto, continuam chegando 20 pacientes por semana e você tem que decidir alguma coisa sobre o que fazer com eles. A vida de médico é difícil, ainda bem que eu sou matemático.