O Globo publicou esse besteirol esses dias sobre o tratamento precoce. Não que O Globo publicando besteirol seja algo digno de nota, nem é o caso que esses autores mereçam ser levados muito a sério, mas os leigos lendo os argumentos aí vão ficar com a impressão que eles têm um mínimo de pé e cabeça e como até agora não vi alguém corrigindo os argumentos em público, vamos cuidar disso.

Indo direto ao ponto principal, o grande furo desse texto é o seguinte: ele confunde “droga útil para o tratamento de covid” com “droga com efeito sobre os desfechos virais” (carga viral, por exemplo). Pelo raciocínio deles, não faria sentido prescrever aspirina quando um paciente de covid tem febre, ou usar anticoagulantes nos pacientes de covid com risco de trombose ou usar dexametasona nos pacientes hospitalizados com covid para reduzir a inflamação no pulmão. Ninguém acha que essas intervenções tem ação antiviral e, no entanto, trazem benefício clínico ao paciente.

Os estudos randomizados sugerem que a hidroxicloroquina não tem efeito nos desfechos virais em pacientes de covid – não vou dizer que há “ineficácia comprovada” para esses desfechos porque isso é uma afirmação muito forte, mas os dados sugerem ineficácia. Por outro lado, esses mesmos estudos randomizados em conjunto sugerem fortemente benefícios clínicos modestos da ordem de 20% e qualquer metanálise razoavelmente honesta da totalidade dos estudos randomizados em fase inicial da doença vai achar estimativas dessa ordem e vai achar significância estatística – embora não para desfechos raros como hospitalização ou morte, o que não era de se esperar que fosse possível achar porque o tamanho de amostra necessário para se ter um poder razoável para se detectar efeito nesses desfechos é muito maior do que a soma de todos os tamanhos de amostra de todos os estudos randomizados que foram feitos.

De onde veio essa ilusão de consenso de que a droga é ineficaz? Simples: estudos irrelevantes em pacientes hospitalizados e autores ignorantes que reportam resultados positivos sem significância estatística como se fossem negativos. Mais os militantes e os corruptos…

Como é possível ter um efeito em desfecho clínico sem ter efeito em desfecho viral? Nada surpreendente aí, provavelmente o mecanismo é similar ao que faz a hidroxicloroquina ter efeito para doenças autoimunes e isso já era comentado em canais razoáveis de divulgação científica desde o início da pandemia.

A argumentação que o texto usa para convencer o leitor da ausência de eficácia da hidroxicloroquina para desfechos virais é bem fraca (estudo in vitro e modelo animal mudam as priors, mas não fecham questão sobre o que vai se observar em humanos) e contém afirmações erradas (tem sim estudos in vitro mostrando efeito antiviral em alguns tipos de células, mas não em outras, as que expressam TMPRSS2). Mas de fato isso não importa muito porque embora a argumentação seja ruim a conclusão nesse aspecto é provavelmente correta.

A “associação a piores prognósticos” mencionada no texto aparece só em estudos em pacientes hospitalizados com doses exageradas, o que é irrelevante para o tipo de intervenção que foi de fato proposta e usada pelos defensores do tratamento precoce.

Para finalizar, vale mencionar que nem de longe “tratamento precoce” é sinônimo de hidroxicloroquina. Os bons médicos – que trataram os pacientes durante a pandemia, fazendo análises de risco e benefício apropriadas com base nas evidências disponíveis – usavam muitas drogas. Acontece que essa foi tão ridicularizada pela imprensa que virou piada e portanto é mais fácil bater nela…

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