Resposta a Sean Purdy, professor de história

Purdy é o cidadão normal com obediência cega à autoridade. É o cidadão normal que se congratula por ser um seguidor de regras, não importando se são absurdas ou não.
Frame de um filme das propagandas semanais do Terceiro Reich. Nestes filmes, eles também mostravam o cotidiano. Aqui, pessoas comuns da sociedade alemã, em 1944, assistindo a um evento esportivo.

De todos os textos que escrevi e publiquei durante a pandemia de COVID-19, em apenas um deles uma pessoa tentou dar uma resposta racional. Foi Sean Purdy, professor de história da USP, quando tentou responder meu ensaio “O dia que entendi o bom alemão”. Foi um dos meus textos que ganhou bastante relevância, com quase 200 mil acessos no Substack e mais de 600 comentários, além de ter sido compartilhado por políticos, cientistas, diversos professores universitários e influenciadores. Isso sem contar a audiência em outros idiomas que publiquei: inglês e francês.

O que chamo de “resposta racional”? É o ato de sentar, escrever um texto com começo, meio, fim e assiná-lo. Não necessariamente isso resulta em uma crítica correta ou intelectualmente honesta. É o caso de Sean Purdy nesta resposta. Bem, por ser o único que tentou, eu o parabenizo, afinal, pelo menos ele tentou. Diversas outras pessoas tiveram apenas reações emocionais, o que não colabora em nada com qualquer debate e que, aliás, traduz bastante o que foi e continua sendo a relação de toda a sociedade com a história recente da pandemia.

E, modéstia à parte, apenas uma única pessoa tentou racionalmente porque os textos são sólidos, completos e com referências.

Vamos relembrar

Eu recomendo fortemente que você leia o texto original antes de ler esta resposta. Mas vamos ao contexto: era o auge da campanha de vacinação contra a COVID-19. Eu li uma notícia de um menino do Chipre, de três anos de idade, que teve uma cirurgia cardiológica de emergência cancelada. Essa cirurgia ocorreria na Alemanha. O motivo do cancelamento? O hospital alemão alegou que os pais da criança não estavam vacinados da COVID-19.

Sim, os pais. Na época, ainda não vacinavam crianças contra a COVID-19. A prioridade era vacinar os mais velhos e os grupos de risco. Apenas posteriormente as autoridades de saúde aprovaram as vacinas COVID-19 para crianças e bebês.

Diante desta recusa, a solução proposta foi bastante simples: em vez dos pais acompanharem a criança para a Alemanha, um parente vacinado o acompanharia. Mesmo com essa oferta, houve nova recusa. Continuaram alegando que os pais não haviam sido vacinados. E a história não para por aí. Os representantes do ministério da saúde do Chipre tentaram posteriormente transferir o menino para a Inglaterra. Também não aceitaram. Depois tentaram Israel. Lá também a criança não foi aceita.

A criança não estava infectada. Os pais não estavam infectados. O acompanhante vacinado sugerido também não estava infectado. A principal questão aí? As recusas foram baseadas numa mentira colossal.

Qual mentira? No auge da campanha de vacinação, políticos, autoridades de saúde, divulgadores científicos e médicos ficaram repetindo que os vacinados protegeriam “pessoas ao redor”. Isso seria, segundo eles, um consenso científico. Com essa mensagem espalhada, os que não se vacinaram eram, portanto, os culpados pela pandemia. Afinal, eram os que estavam colocando em risco as pessoas “ao redor”.

O problema dessa afirmação? As vacinas COVID-19 nunca tiveram a capacidade de reduzir transmissão. Sequer fizeram algum estudo de redução de transmissão. Mas a principal mensagem da campanha foi essa. E foi muito bem planejada. Antes de iniciarem a campanha, cientistas de Yale fizeram uma pesquisa com o objetivo de descobrir quais seriam as mensagens mais persuasivas, que fariam mais pessoas aderirem às vacinas COVID. “Enfatizar que a vacinação é uma ação pró-social não apenas aumenta a adesão, mas também aumenta a disposição das pessoas de pressionar outras a fazê-lo”, concluíram os cientistas.

Ou seja, foi uma campanha baseada numa qualidade que as vacinas Covid nunca tiveram. E foi a partir do princípio de proteger pessoas “ao redor” que todos os lugares implantaram passaportes sanitários. Sem dúvida alguma, foi eficaz em criar uma lucrativa demanda.

Há mais um contexto importante. Todos que tentaram falar que isso era uma mentira foram, de diversas formas, atacados. Um caso emblemático foi o de Alex Berenson, ex-jornalista de ciência do New York Times. O Twitter baniu Berenson permanentemente após ele tuitar que as vacinas de mRNA “não interrompem a infecção ou a transmissão”. Por que emblemático? Porque ele chegou na origem de seu banimento. Foi a Casa Branca, em conluio com as big techs, que forçou para que ele fosse censurado e banido. Posteriormente, o jornalista processou o governo Biden.

Berenson é só um exemplo. Muitos que tentaram falar a mesma coisa sofreram censura. O caso ganha uma conotação histórica porque os EUA possuem a liberdade de expressão como um dos seus principais valores fundamentais. O cenário torna-se ainda pior porque Berenson apenas falou uma simples verdade.

Em resumo, o retrato é o seguinte: quando se junta um grande medo de uma doença, uma mentira científica repetida exaustivamente, censura massiva dos que denunciam, toda a sociedade perde a empatia com os “culpados” pela doença. É o caso do menino do Chipre. Todo mundo topou com naturalidade deixá-lo morrer para penalizar os pais, que seriam os culpados pela pandemia.

E uma das coisas que mais impressiona nessa história é que os que negaram a cirurgia de emergência do menino do Chipre eram profissionais de saúde, exatamente de quem esperamos atitudes de esclarecimento e combate às mentiras sobre saúde pública. E como foram três hospitais distintos negando, isso envolveu muita gente.

Holocausto

Segundo as melhores estimativas dos historiadores, 6 milhões de judeus foram mortos durante o holocausto. É muita gente. Nos campos de extermínio, judeus foram jogados em câmaras de gás. Era um processo industrial da morte.

O que pouca gente comenta é que para que o holocausto ocorresse, como ocorreu, era necessário que a imensa maioria da sociedade alemã estivesse a a favor ou simplesmente não se importasse com o que ocorria diante dos olhos. Era necessário que não houvesse empatia nenhuma. Era necessário que o mal fosse entendido como correto e moral.

Como explicado no meu artigo original, na época, o caldo era o mesmo: grande medo de uma doença letal, uma mentira científica repetida exaustivamente por autoridades de saúde e pela mídia, apontamento dos culpados – no caso, os judeus, por serem os transmissores e portadores do tifo –, e censura para quem denunciasse. O resultado foi o mesmo: completa falta de empatia de toda a sociedade para as vítimas da difamação dita como consenso científico.

Relembrado o contexto todo, vamos à resposta ao professor.

Desonestidade intelectual

Em seu texto, Purdy faz acusações genéricas. Algumas engraçadas, como por exemplo, quando me acusa de erro de nomeação por me identificar como de esquerda. Ele também aborda diversos assuntos, como quando afirma uma eficácia científica comprovada das máscaras contra a COVID-19, algo descartado pela análise padrão ouro, de máximo nível de evidência, da Cochrane.

Mas vamos ao cerne do texto, o principal da resposta de Purdy: “Ao se compararem às vítimas do Holocausto, os militantes anti-vacina e anti-máscara como Filipe Rafaeli querem que acreditarmos [sic] que o encorajamento ou exigência de se vacinar no meio de uma pandemia que matou 640.000 mil pessoas no Brasil e mais que 5 milhões no mundo inteiro é igual ao genocídio nazista de perseguir e exterminar judeus”.

Diante disso, a primeira coisa que preciso explicar aos leitores são as técnicas de desonestidade intelectual. A mais flagrante delas é que Purdy escreveu um longo texto em resposta ao meu, mas não citou sequer uma frase que eu tenha dito — sequer uma única aspa.

Ou seja, ele respondeu ao que ele imagina que eu disse, não a nada que eu, de fato, tenha escrito. Afinal, ele não conseguiria, porque não existe uma frase sequer em meu texto que dê suporte a interpretação de que a exigência de se vacinar é igual ao genocídio nazista. Realmente, eu nunca disse ou sugeri isso.

Tudo que eu fiz foi olhar para a sociedade, como ela reage quando há um medo de doença e uma colossal mentira contada. Ou seja, eu só olhei para o “bom alemão”, que seriam as pessoas normais da sociedade. É um paralelo histórico não para igualar eventos, mas para mostrar padrões humanos. Falo sobre o cidadão comum que participa de atrocidades por seguir ordens, crenças ou convenções.

Purdy na parede

No fim do meu texto original, eu deixei um tira-teima argumentativo, além de ser mais uma reflexão: “Estou com os ouvidos prontos para ouvir ofensas por ter escrito este artigo. Aceito todas, desde que a pessoa que deseja me ofender, primeiramente, diga que concorda com a criança do Chipre não ter sua emergência cardiológica atendida”.

Após Purdy publicar sua crítica, eu o pressionei pedindo sua resposta: se ele culparia os pais pelo menino ter a cirurgia de emergência cancelada. É uma resposta de sim ou não, sem mais opções. Precisei perguntar diversas vezes.

Purdy provou meu ponto. É o cidadão normal, não radical, infectado pela mentira, que perdeu a empatia pelo menino com risco iminente de morrer. É o cidadão normal com obediência cega à autoridade. É o cidadão normal que se congratula por ser um seguidor de regras, não importando se são absurdas ou não.

Negacionistas do holocausto

O termo negacionismo surgiu exatamente para designar as pessoas que negam que houve um holocausto duante a Segunda Guerra Mundial. Diante disso, eu consigo imaginar algumas motivações para que pessoas neguem as mortes industriais de judeus na mão dos nazistas. A primeira delas, teria uma motivação anti semita. Uma pessoa que acredita que todos mentem por ordem das vítimas. Neste caso, não há diálogo possível, afinal, temos fotos, filmes, documentos comprovando o holocausto.

Uma segunda motivação poderia, até certo ponto, ser válida. É alguém questionar o número redondo de 6 milhões, sugerindo que pode ter sido inflado para parecer maior. Bem, se alguém fizer um novo cálculo algum dia e disser que não são 6 milhões, mas 5, ou até mesmo a metade, 3 milhões, para mim, não faz a menor diferença. Continua sendo um holocausto, onde enfiaram, friamente, pessoas nas câmaras de gás para serem mortas. Continua sendo uma das passagens mais horripilantes da história.

O que ninguém jamais analisa ou reflete é que há ainda uma possibilidade rara, e até trágica, que merece reflexão: o negacionismo por excesso de fé na bondade humana. Uma rejeição do mal devido os livros de história soarem absolutamente incoerentes. Acompanhe o raciocínio comigo. Para um holocausto ocorrer é preciso que a maioria absoluta da sociedade dê apoio. É muita gente envolvida, desde as triagens até a “solução final”. A famosa desculpa do “cumprindo ordens” não explica. É preciso muita gente a favor e quase ninguém contra, crítico, ou fazendo corpo mole.

Eu, pessoalmente, não gosto de analisar esse período da história olhando para a sociedade alemã como extraterrestres, como não humanos, como diferentes de nós ou de qualquer outra sociedade. Olhá-los como extraterrestres é fingir que algo assim jamais aconteceria novamente. É fugir da análise.

Este é o ponto que alguém pode, legitimamente e de boa fé, questionar. Seria algo assim: “como aquela sociedade tornou-se tão má?”. Afinal, tem que estar quase todo mundo a favor. E, portanto, a partir deste questionamento, entender como incoerente a história do holocausto. Uma sociedade inteira colaborar com o sumiço e extermínio de um monte de gente que até outro dia convivia junto, que eram razoavelmente amigos, só porque todos cumprem ordens de cima? Não dá. Sério, a conta não fecha.

Neste caso, para os que duvidam, entra meu texto, “O dia que entendi o bom alemão”. Ele analisa os tempos atuais para entender os fatos do passado. Deste modo, é fácil entender que sim, o holocausto ocorreu mesmo. Não, os alemães não eram alienígenas. Eles eram iguais a gente, hoje, agora. Sim, foi fácil. Sim, a barbárie pode ter cara de normalidade. Sim, todo mundo apoiou – ou não se importou, inclusive profissionais de saúde e professores das mais importantes universidades.


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Foto de Filipe Rafaeli

Filipe Rafaeli

Escreve sobre a pandemia em seu Substack e tem artigos publicados em veículos internacionais, incluindo o jornal francês "France Soir", o "Brownstone Institute" dos Estados Unidos, e também o site americano "Trial Site News".

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