‘Na saúde e na doença’, livro de Olavo Amaral sobre a pandemia, não serve como documento histórico

Cinco anos após a COVID-19, dois fatos desmontam narrativas oficiais – e sua ausência no livro de Olavo Amaral o inviabiliza como documento histórico.

Fui presenteado pela editora Objetiva, uma das mais importantes do Brasil, com um exemplar do livro “Na saúde e na doença”, de Olavo Amaral, médico, escritor, pesquisador e professor de medicina da UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro.

No vídeo de propaganda publicado no perfil do instagram da editora, Amaral, além de explicar que é uma história em primeira pessoa, conta um pouco da obra: “o livro é uma coleção de ensaios sobre como o mundo real e a ciência interagem, negociam, entram em embate”.

“Eu encarei esse projeto muito como jornalista, cidadão, sujeito que vai sair por aí batendo perna”, afirmou. Com frase sarcástica, ele explicou que “se infiltrou em grupos de médicos ‘cloroquiners’ e saiu vivo para contar a história”.

O motivo de terem me presenteado é que sou um personagem bastante presente no livro. Por zoom, no auge da pandemia, Amaral me entrevistou algumas vezes, enquanto milhares morriam diariamente de COVID-19. Logo na abertura do capítulo que ele dedica a cobrir a pandemia, eu sou, por duas páginas, o personagem de abertura. Amaral provavelmente entendeu que sou uma curiosidade entre todas as pessoas que se meteram no assunto. Durante as 170 páginas subsequentes do capítulo, sou citado, como contraponto, diversas vezes.

Não tiro a razão de Amaral em me entender como uma curiosidade. Realmente, eu não sou médico, cientista ou pesquisador. Sou um mero piloto de acrobacias e entrei com profundidade no assunto, lendo todos os estudos possíveis, trocando ideias com cientistas e escrevendo tudo que aprendia em um substack, onde juntei dezenas de longos artigos traduzindo temas complexos em linguagem simples. Meu objetivo sempre foi modesto: fazer as melhores escolhas e sair vivo da pandemia, além de orientar as pessoas que gosto sobre o que eu já tinha aprendido. Como resultado, os textos viralizaram além do meu objetivo: foram compartilhados por médicos, cientistas, associações médicas e políticos de diversos países.

Neste meu perfil inicial, Amaral começa narrando um de meus voos de acrobacias. Logo ele transcreve uma frase minha, que disse durante uma das entrevistas: “Estamos passando pelo maior crime contra a humanidade desde a Segunda Guerra, que é a supressão de todos os tratamentos. Não é um, dois, três, é um monte”. Isso é algo que sustento até hoje.

Na sequência, ainda no perfil, Amaral ilustra bem como analisei a questão de risco e benefício quando as evidências da hidroxicloroquina contra COVID-19 não eram definitivas. Eu explicava que no meu cálculo, tomar o medicamento, caso tivesse a doença, sem dúvida alguma, já valia a pena:

O que não quer dizer que ele não use também da lógica matemática ao explicar suas decisões. “Vamos lá, acompanha o pensamento comigo, você tem lá um p igual a 0.20, e o comprovado cientificamente é quando ele está abaixo de 0,05. Vamos supor que existe só esse estudo. O.k., existe uma possibilidade de ser ao acaso. Quais são os efeitos colaterais dessa porra? Tomar hidroxicloroquina cinco dias? Porra nenhuma. Zero. É você ter a chance de ter uma diarreia. Se existisse só esse estudo eu tomava. É uma questão de risco e benefício. Qual o risco? Nenhum. Qual o benefício potencial? De 30% a 40% menos internações. Ótimo, dá aqui que eu vou tomar.” E antes que eu conteste as suas credenciais de médico ou estatístico, ele emenda: “Eu sou piloto de acrobacia. Viro aviões de ponta-cabeça a baixa altura. Eu não tenho benefício nenhum nesse negócio, só risco”.

Estávamos discutindo o estudo de Skipper, da Universidade de Minnesota, do uso da hidroxicloroquina em tratamento precoce. Foi o primeiro estudo randomizado, duplo cego, controlado por placebo, do efeito do medicamento contra a COVID-19 nesta situação – quando o tratamento começa em até 5 dias de sintomas. Foi publicado ainda no meio de 2020. Neste estudo, 212 pessoas tomaram HCQ e 211 tomaram placebo. O resultado foi positivo para o medicamento: houve 50% menos hospitalizações no grupo tratamento comparado ao grupo placebo. Mas o p-valor é maior que 0,05. Por isso a discussão era risco e benefício.

Na prática, apesar do p-valor ser 0.29, esse estudo de Skipper simplesmente confirmou a eficácia da HCQ contra a COVID-19, porque ele, como era de se esperar, coincidia com os resultados de todos os estudos observacionais até então, também todos positivos. Ou seja, deixava pouca margem para a dúvida. Ou melhor, ficava ainda mais favorável para o medicamento na questão de risco e benefício.

Por que discutíamos conceitualmente “se existisse só esse” estudo? Porque ele foi confirmatório, mas se fosse apenas único mesmo, ainda assim valeria a pena.

Notinha adicional sobre o estudo de Skipper: foram pouco mais de 200 pessoas por braço, com 50% de redução de hospitalizações da hidroxicloroquina. O planejado original era para serem 800 pacientes por braço, que mantendo os 50% de eficácia, daria um p-valor baixíssimo, sem “margem de erro”, mas o estudo foi interrompido sem explicarem o motivo. Ou seja, pararam o jogo quando HCQ estava ganhando de goleada. Que pena, né?

De qualquer modo, não é possível, aqui, neste texto, resenhando o livro de Amaral, eu explicar em detalhes o que significa o p-valor e o cálculo de risco e benefício. Eu já fiz isso, no auge da pandemia, em um longo texto: Hidroxicloroquina: o mundo perdeu a noção de risco e benefício. E não se preocupe, neste texto, eu explico o complexo tema do “p-valor” em linguagem acessível. Comparo com algo que todo mundo conhece: margem de erro nas pesquisas eleitorais.

Para registro histórico, exatamente no dia que publiquei este texto, em 10 de novembro de 2021, morreram 254 pessoas de COVID-19 no Brasil. Para segundo registro histórico: estamos em agosto de 2025, e hoje existem 424 estudos com resultados clínicos da hidroxicloroquina contra a COVID-19. Destes, 38 são em tratamento precoce. Entre eles, 17 medem redução de mortalidade – algo que não dá para errar a conta ou confundir interpretação – e absolutamente todos eles, por unanimidade, são positivos, e com uma média de 76% na redução de mortes.

O livro

Durante a leitura das 170 páginas que tratam da pandemia, eu fiz mais de 50 anotações. Trazer todas elas, contextualizá-las para tecer críticas, provavelmente faria eu escrever mais do que 170 páginas. Além disso, faria eu abordar, novamente, coisas que já escrevi. Por isso, aqui farei apenas alguns comentários. De qualquer forma, eles são, historicamente, bastante ilustrativos. Farei isso antes de ir diretamente nos grandes contrastes gerados depois de cinco anos de discussões intensas sobre tratamentos, vacinas e a resposta geral à pandemia.

Na página 206, Amaral comenta sobre os divulgadores científicos que ficaram famosos durante a pandemia. Ele fala sobre Paulo Miranda Nascimento, mais conhecido como Pirula, que possui mais de 1 milhão de seguidores no Youtube. Pirula fez, ainda em 2020, um vídeo sobre a hidroxicloroquina, onde, explicando sobre os perigos do medicamento, eloquente, disse: “Você pode ter uma perda absurda de visão, talvez até cegueira”.

Amaral, em nenhum momento posterior do livro, voltou para corrigir Pirula, 43 anos, que atualmente está convalescente de um AVC (doença que explodiu gravemente desde o meio de 2021 e que ninguém sabe o motivo do aumento), o deixando dois meses em uma UTI. 

Na época, poderíamos ficar por horas discutindo se as evidências de efeito eram suficientes ou não. A questão é que inventar efeitos colaterais de um medicamento com quase 80 anos de estudos de segurança é, digamos, bastante difícil.

Neste estudo, publicado na Pubmed, de 2019, os autores detalham como apenas 0,68% das pessoas que tomam hidroxicloroquina por 5–7 anos podem desenvolver visão parcial borrada. Sim. isso mesmo. Precisa tomar diariamente pelo menos cinco anos para ter um risco de 0,68 de ficar com a visão parcialmente borrada. Cego? Ninguém jamais ficou.

Quer mais? No mesmo tema da “cegueira”? Vamos lá. Este estudo, de 2003, diz que não foi observada toxicidade na retina por causa da hidroxicloroquina em nenhum dos 526 pacientes durante os primeiros 6 anos de tratamento. Sim. Antes de seis anos contínuos. Nenhum problema.

As doses propostas para tratamento precoce são as mesmas destes estudos de segurança, mas por apenas 5 dias, algo bastante diferente de cinco anos, não é? Ou seja, Amaral simplesmente deixou Pirula mentir.

Historicamente, isso gera um relevante questionamento: por que tantas pessoas se esforçaram enormemente para afastar as pessoas da hidroxicloroquina, com tanta ênfase, mentindo descaradamente sobre efeitos colaterais imaginários? Por que isso nem é lembrado ou é perdoado com tanta facilidade?

Inútil como documento histórico

Passados mais de cinco anos do início da pandemia, com mais de 700 mil mortes apenas no Brasil, após anos e anos de discussões sobre a eficácia de tratamentos e vacinas, dois contrastes gritantes ficaram. São fatos que, ao serem jogados à mesa, destroem qualquer fé que poderia existir entre os defensores da narrativa oficial da COVID-19.

O primeiro é que, agora, agosto de 2025, o Brasil segue como o único país do mundo obrigando vacinas COVID-19 em crianças de 6 meses a 5 anos de idade. Único. Nenhum outro país faz isso. Estamos sozinhos. Todos os outros deixam os pais dos bebês e crianças escolherem se querem ou não querem dar o produto aos seus filhos. 

Vou mais longe um pouco ainda no mesmo assunto. Enquanto o Brasil obriga, países como Reino Unido, Alemanha, Suécia, Dinamarca e Japão, apenas para citar alguns exemplos, sequer recomendam para crianças e jovens. Recomendam apenas para pessoas muito idosas ou, se jovens ou crianças, apenas para as muito doentes, cheias de comorbidades. Ou seja, apenas para exceções. E apenas após um exame médico rigoroso acompanhado de receita médica, sob toda responsabilidade do médico que recomendou. Mesmo assim, é apenas recomendação, sem jamais obrigar.

O motivo disso? É simples. O risco supera o benefício. Acompanhe o raciocínio comigo. As crianças da Europa são iguais, fisiologicamente, às brasileiras. O vírus que circula por lá é igual ao daqui. Não faz, portanto, o menor sentido existir um cálculo de risco e benefício diferente. Restaria, como argumento, dizer que esses países são republiquetas de bananas, pobres, sem dinheiro para ofertar vacinas, ou que são absolutamente displicentes com a saúde de suas crianças, ou, para os mais embriagados pela narrativa oficial, que são “países antivacinas”. Convenhamos, esses raciocínios são delírios. Não colam. Ou seja, vou resumir: o Brasil virou desova de produtos farmacêuticos rejeitados no mundo todo. Mas o assunto, no Brasil, permanece tabu. Não pode ser discutido.

Como você escreve um livro, lançado no meio de 2025, querendo tratar da história da pandemia, e sequer menciona essa aberração?

Vamos para o segundo contraste: como todos sabem, “cloroquina” – e sua irmã um pouco mais nova, a hidroxicloroquina –, viraram piada, sambinhas, sinônimos de gente maluca, ruim das ideias. Virou quadros de humor e introdução à anedotas. Na CPI da COVID, Luana Araújo, médica, explicou para o Brasil todo que este assunto é o equivalente a “escolher de que borda da Terra plana a gente vai pular”. Na TV, nos jornais, a explicação era simples e massivamente divulgada: “ineficácia comprovada”. Sim, que comprovaram a ineficácia e já era! Acabou a conversa! Continuou insistindo nisso? Tá cloroquina da cabeça, só pode! Maluco das ideias? Como assim, você acha que sabe mais do que todos os cientistas do mundo? Descobriu sozinho? Vai rezar para um pneu, vai, seu negacionista!

Diante deste conhecimento absolutamente consolidado, para o contraste, a gente abre o site da Universidade de Oxford, o cartão postal da Inglaterra. Essa Universidade, em qualquer ranking sério do mundo, está listada como primeira, segunda ou terceira mais importante do planeta, rivalizando, ano a ano, com Harvard ou MIT. Com quase mil anos, a Universidade de Oxford foi um importante centro do iluminismo, ou seja, fez parte da transição da humanidade da idade média para a racionalidade, a ciência.

E o que temos publicado no website de Oxford? Uma notícia: “Hidroxicloroquina oferece prevenção moderada da COVID-19, mostra grande ensaio clínico”.

Está aí, no site da Universidade de Oxford: cloroquina é eficaz contra a COVID-19. Mas há diversas coisas a se reparar nessa notícia. Há bem mais profundidade. A primeira é que é uma meta-análise de estudos randomizados “padrão ouro”. Ou seja, é o mais alto nível de evidência científica possível. Para dar um exemplo, 89% dos tratamentos usuais da cardiologia, esses que todos os médicos recomendam, não possuem o nível de evidência que há da HCQ contra a COVID-19 em profilaxia pré-exposição. Ou seja, cloroquina contra a COVID-19 está entre os 10% de medicamentos mais comprovados do mundo. Precisaram noticiar assim porque não tinha mais para onde empurrar as traves do gol. 

Por isso, não usaram a tradicional linguagem cuidadosa dos estudos científicos, como “pode ter efeito”, seguido de “mais estudos precisam ser feitos”. Disseram que é eficaz, pronto e acabou. Mais ainda a se reparar: o estudo confirma outra meta-análise da Universidade de Harvard, outra que fica sempre nos topos dos rankings.

É um estudo revisado por pares e publicado em um periódico científico médico. Mas também virou notícia no site de Oxford. Ou seja, não dá para jogar aquele migué de “são pesquisadores de Oxford, não é da Universidade de Oxford”. Teve aval. Continuando ainda, colocaram a foto dos pesquisadores. São mais de 70 pessoas que assinam o estudo, para não ter muita discussão, cara feia e gritaria, até porque isso não adianta nada para a ciência. Além de tudo isso, entre os que assinam, está o Sir Nicholas John White, um cientista com H-index maior que 200. É o maior especialista do mundo em doenças tropicais. Sobrou algum Zé Mané, fazendo pose de inteligente, para chamar Oxford de “terraplanista”?

Pois bem, como pode você querer escrever um livro com a história da pandemia e não falar desse estudo de Oxford? Como pode deixá-lo de fora? A comprovação científica máxima do medicamento mais atacado da história. Quem falava disso era evitado na sociedade, atacado, chamado de louco, sofria sarcasmo, censura e piadas, mas estava certo.

Pior é que, para ser um documento histórico, não bastaria simplesmente falar desse estudo de Oxford. Precisaria questioná-lo. A primeira questão é: por que Oxford levou mais de 500 dias para publicar o resultado? Segunda questão: por que alteraram os endpoints no meio do estudo para soroconversão, em vez de COVID sintomática? Afinal, soroconversão não foi usado por nenhum estudo das vacinas, por exemplo. Será que usando soroconversão o efeito ficaria, como está na notícia, apenas “moderado”? São questões que qualquer livro sobre a pandemia deveria fazer.

Esse segundo contraste máximo, também ignorado por Olavo, torna-se ainda mais intrigante porque ele mesmo, quando era colunista do Nexo Jornal, escreveu sobre este estudo: A revanche silenciosa da cloroquina

Na abertura do artigo, Olavo se posicionou: “Revisitar a improvável saga do medicamento mais odiado da última década é um exercício de humildade para o establishment científico”. Na sequência, ele falou, cuidadosamente, dos resultados positivos.

Talvez a resposta para ele ter deixado esse estudo chave de lado no livro foi a reação que recebeu. “Pensei que Nexo fosse sério”, comentou um leitor. “Esse jornaleco foi para o buraco”, disse outro. Uma médica o chamou de “analfabeto funcional”. “Olavo Amaral, mas poderia ser ‘de Carvalho’”, comentou outro leitor. “Tinha que ser um Olavo”, disse outro, também referindo-se ao guru da extrema direita. Uma psicóloga, mestre em ciências, cancelou sua assinatura no Nexo. “Não assino mais. E lamento muito”. “Caça-cliques de última categoria”, comentou um repórter de um programa de saúde coletiva da Fiocruz, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública e membro da Associação Brasileira de Saúde Coletiva. “Irresponsabilidade imensa do Nexo manter esse cara como colunista”, disse uma professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

E não parou por aí: “Colunista delirante. Adeus”, disse um doutor em história. “Hackearam o perfil do Nexo Jornal”, fez piada outro leitor. Foram centenas de comentários, em todas as redes. “Cloroquiners jamais admitirão que seu remédio de estimação não é indicado para COVID-19”, disse um mestre em psicossociologia, palestrante do Tedx, usando exatamente o termo que Amaral, no vídeo de propaganda da Objetiva, usou com sarcasmo para tentar se distanciar. Ou seja, o próprio Olavo tornou-se um detestável “cloroquiner”.

No “The Intercept Brasil”, deram espaço para que Letícia Sarturi, divulgadora de ciência e pesquisadora no Centro de Estudos SoU_Ciência da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), respondesse a Amaral: “Negacionismo na medicina virou o novo normal”.

“A necropolítica da pandemia parece ser normalizada com veículos de imprensa dando voz aos negacionistas que, por ideologia política, seguem defendendo o uso de hidroxicloroquina na COVID-19 e são contra a vacinação”, acusou Sarturi. “Recentemente, uma coluna no Nexo Jornal defendeu a ‘redenção da cloroquina’, baseada em uma análise dos resultados de um único artigo científico”.

(Na verdade, Sarturi nem sabe o que é e para que serve uma meta-análise. Oxford fez seu seu ensaio clínico em profilaxia pré-exposição, deu positivo, e juntou com todos os outros estudos em profilaxia pré-exposição da HCQ. E todos os anteriores também era positivos. Nenhum é negativo. Portanto, não é um “único artigo”. Estão todos abordados).

Sarturi segue se colocando como porta-voz da ciência: “esse artigo não muda absolutamente nada no consenso científico”. “O problema é que, quando a imprensa esquece o seu relevante papel social e resolve dar voz a grupos negacionistas, ela ajuda a deslocar o senso comum sobre o tema e a incutir o pensamento de que o negacionismo é um debate legítimo e que é razoável alguns médicos adotarem condutas contrárias ao consenso científico”.

Olavo sentiu o que nós sentimos

Quando li este ofensivo artigo no The Intercept, enviei a Olavo. Ele, obviamente, ficou indignado com tanta desonestidade intelectual, falta de conhecimento científico e por acusá-lo de ser de direita, acusação que também recebi durante toda a pandemia. Na época, ele disse que ia pedir um espaço, no próprio Intercept, para responder Sarturi. Eu afirmei que não dariam seu direito de resposta. Eu, sendo sarcástico e apostando todas as minhas fichas, disse algo assim: “Não se pode dar palco para negacionista”. Obviamente, não deram o espaço.

Não importa que Olavo estava baseado em um estudo com aval de Oxford. Não importa que seja o mais alto nível de evidência científica, não importa que o p-valor esteja lá embaixo, não importa que foi baseado apenas em estudos RCT “padrão ouro”. A partir daquele momento, ele era “negacionista”, pronto e acabou! Além disso, coincidentemente, poucos tempo depois dessa gritaria e difamação, o contrato de Olavo com o Nexo foi encerrado.

Olavo sentiu um pouco do que nós, que sempre defendemos que HCQ valia a pena, desde o começo da pandemia, sentimos. Mas com a diferença de que ele, ao afirmar a eficácia, se baseou no nível de evidência máxima, onde não dá mais para empurrar para longe as traves do gol. E com outra diferença marcante: ele defendeu a eficácia depois que a pandemia acabou, e eu, entre outros, tentávamos conscientizar quando 4 mil pessoas morriam por dia apenas no Brasil, o que era muito mais difícil.

Aquele tempo foi tão pesado, que no auge, mais de uma vez, acordei de madrugada questionando minha sanidade. O tratamento estava ali, eficaz, valia a pena, milhares morrendo por dia, e a mídia em uníssono falando que simplesmente “não existem evidências científicas”. Repetiam ainda que a “ineficácia foi comprovada”. Destas vezes que acordei de madrugada, precisei ir ao computador, abrir os estudos científicos novamente, conferir o endereço, se realmente eram de periódicos científicos, e ler novamente em detalhes. “Não, não estou louco, está aqui”.

Conheço muitos médicos que ficaram depressivos, alcoólatras. Foram perseguidos, processados, demitidos e difamados. Enquanto morria gente à rodo, com todos com medo, era fácil para as pessoas em geral acharem que os que defendiam a possibilidade tinham se agarrado em alguma ilusão para que não tivessem medo. Uma conclusão simples: a realidade é feia demais para que se acredite nela. Se a reação a Olavo, quando não há mais medo, já com o nível máximo de evidência, vindo de instituições incontestáveis, foi essa, imagine para quem falava ainda com as evidências se formando.

Sei da história de um doutor, professor de medicina, em que a mãe, também doutora e professora de medicina, e o pai, também médico, deixaram de falar com ele. Não queriam sequer ouví-lo explicando os dados. Viravam de costas, afinal, “não se deve ouvir negacionista”. Imagine o peso disso. Detalhe: ele tratou centenas no auge da pandemia e, enquanto morria um a cada 50 infectados, nenhum de seus pacientes morreu com seu cocktail.

Olavo não é desonesto intelectual, mas deixou escapar o essencial

Amaral não colocou, em seu livro, os dois contrastes gritantes que ficaram de resultado: Oxford afirmando eficácia da hidroxicloroquina e o Brasil sendo o único país do mundo obrigando vacinas COVID em crianças, virando desova do mundo. Mas eu o entendo. É excessivamente pesado. Talvez a Objetiva nem publicasse seu livro se ele tivesse ido por este caminho, de contar o que a sociedade não quer ouvir. 

Olavo também aborda muito a situação política. Comenta bastante sobre a relação deste tratamento com o bolsonarismo, colocando o que o público espera: uma relação de bolsonarismo e anti bolsonarismo. Ele poderia ter retirado, com facilidade, este viés de todo o livro ao citar que hidroxicloroquina/cloroquina sempre esteve no protocolo oficial de Cuba contra a COVID-19, desde março de 2020. Mas Olavo não é o primeiro a ter dificuldades de atravessar as fronteiras do Brasil ao discutir este tema.

Ao mesmo tempo, Amaral até me elogia. Em uma certa parte, quando discute o estudo de Harvard, o que foi confirmado posteriormente por Oxford, ele diz: “Rafaeli, designer e piloto de acrobacias, é capaz de compreender uma metanálise melhor do que os checadores de fatos da Reuters e está mais a par do assunto do que a maioria dos experts consultados”. Sim, é verdade.

Olavo, ao não citar Oxford, depois de ter feito isso no Nexo Jornal, claramente recuou. Realmente, não é fácil enfrentar as ofensas, o cancelamento. Não é fácil ser ejetado de uma tribo. Não é fácil você estar baseado nos mais rigorosos dados, saber do que está falando, e ser ofendido de “negacionista” por ignorantes diplomados que deveriam ter a capacidade de entender o que foi dito. Tem gente suportando isso por muito mais tempo, de modo muito mais pesado? Sim, tem, mas não estamos fazendo um comparativo de resiliência.

De qualquer forma, o livro tem ainda uma utilidade, mais imediata, mas tem: serve para os leitores imersos na narrativa oficial cheia de certezas, como as pessoas que absorveram integralmente o “comprovadamente ineficaz” martelado pela mídia. Ou seja, o livro é capaz, de modo suave, de tirar os leitores dessa situação. Fazer, pelo menos, as pessoas entenderem algo assim: “não é tão simples”. Isso já ajuda. Como resumiu um amigo, a obra vai no ritmo assim: “Tá, os negacionistas não eram tão negacionistas e tinham alguma razão, mas isso é um detalhe”.

Contudo, definitivamente, por não ter entrado dos dois contrastes gritantes, o livro não serve como um documento histórico. Essas omissões não são detalhes, mas um apagamento grave da realidade. Não serve para um historiador ou estudante de medicina, daqui dez, vinte ou cinquenta anos, entender o que foi a pandemia de COVID-19, o ano que o mundo parou como nunca antes na história, o maior evento da humanidade desde a Segunda Guerra mundial.

Nota: O estudo e meta-análise de Oxford trata exclusivamente de profilaxia pré-exposição, onde há o nível máximo de evidência. Contudo, hidroxicloroquina também é eficaz em profilaxia pós-exposição, onde a pessoa toma o medicamento após ter contato com alguém infectado para evitar de se infectar. Temos boas evidências disso. É também bastante eficaz em tratamento precoce, quando a pessoa toma até 5 dias depois de estar infectado, já com sintomas. Em pacientes hospitalizados ou intubados, a eficácia, se existir, é baixa ou nula.


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Foto de Filipe Rafaeli

Filipe Rafaeli

Escreve sobre a pandemia em seu Substack e tem artigos publicados em veículos internacionais, incluindo o jornal francês "France Soir", o "Brownstone Institute" dos Estados Unidos, e também o site americano "Trial Site News".

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