O que vamos checar?

No dia 26 de setembro, Pedro Arantes, Soraya Smaili, Maria Angélica Minhoto e Letícia Sarturi publicaram um texto na Folha de S. Paulo, na coluna “Sou Ciência”. O título era um questionamento: “Um negacionista moderado?”.

Qual o contexto do artigo?

O artigo foi sobre a corrida eleitoral de São Paulo, discutindo o passaporte vacinal implantado na cidade durante a campanha de vacinação COVID-19, entre outros aspectos da pandemia. Os autores defendiam a eficácia do passaporte para conter a propagação do vírus.

O que é o “Sou ciência”?

O “Sou Ciência” se auto define como um Centro de Estudos e Think Tank sobre Sociedade, Universidade e Ciência. Em sua página oficial, eles informam que são sediados na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).  “Também conta com um Comitê Científico de alto nível, com representação nacional e internacional”, informam. “Adotamos a política de ciência aberta e pública”, complementam.

Quem financia o “Sou ciência”?

Segundo o último relatório, de 2022, eles informam que a entidade recebeu um fomento naquele ano de R$ 738 mil. Sendo R$ 294 mil da Fundação Tide Setubal, R$ 144 mil do Instituto Serrapilheira e R$ 300 mil de uma emenda parlamentar da Deputada Federal Sâmia Bomfim, do PSOL.

Quem são os autores?

Soraya Smaili é farmacêutica, pesquisadora, professora e ex-reitora da Unifesp. Pedro Arantes é arquiteto e urbanista e professor universitário. Maria Angélica Minhoto é pedagoga, economista e professora da Unifesp. Letícia Sarturi é divulgadora científica, mestre em imunologia, doutora em biociências e apresentadora do PodCast “Escuta a Ciência”.

MPV entrou em contato

A redação do MPV enviou um e-mail para o e-mail oficial do “Sou Ciência”, para o Ombudsman da Folha de S. Paulo, para o Painel do Leitor da Folha, para a Faculdade de Medicina da UNIFESP, e para a assessoria de imprensa da UNIFESP pedindo esclarecimentos:

Prezados colaboradores do Sou Ciência/Unifesp/Folha,

Nós, do MPV – Médicos Pela Vida, estamos fazendo uma checagem de fatos. Será uma checagem que ficará pública em nosso website. Somos uma associação médica com dezenas de milhares de médicos e temos uma profunda preocupação com a desinformação sem bases científicas sólidas. Queremos levar informações confiáveis de saúde aos nossos associados, além do público em geral que acessa nosso website e nossas redes sociais.

Lemos com atenção, no último dia 26, publicado na Folha de S. Paulo, um texto de autoria do Sou Ciência/Unifesp, assinado por Pedro Arantes, Soraya Smaili, Maria Angélica Minhoto e Letícia Sarturi. O título do artigo é: “Um negacionista moderado?”.

Prefeito de São Paulo renega defesa da vacinação – 26/09/2024 – Sou Ciência

Logo no início do artigo, os autores defendem a obrigatoriedade das vacinas COVID-19. “Por que negar instrumentos eficazes de contenção da propagação do vírus como o passaporte vacinal?”, questionam.

Na sequência, os autores fizeram mais afirmações: “As vacinas foram fundamentais na redução da mortalidade, no controle da transmissão do vírus e na mitigação do colapso dos sistemas de saúde em todo o mundo”.

“Só os lunáticos acreditam que a covid-19 foi relativamente domada sem o uso intensivo das vacinas. Para quem não se lembra, os ‘passaportes da vacina’ desempenharam um papel crucial no auge da pandemia, servindo como uma ferramenta de saúde pública que ajudou a conter a disseminação do vírus, estimular a vacinação e possibilitar a retomada gradual de atividades”.

Entretanto, o texto não possui links para estudos científicos que colaborem com essas afirmações, principalmente a de que as vacinas COVID-19 reduziram a transmissão do vírus. É neste ponto que faremos nossa primeira checagem.

Sobre transmissão:

Estudos sólidos, produzidos logo no início da campanha de vacinação, já não indicavam que as vacinas reduziam transmissão:

1 – As vacinas não reduzem transmissão:

Fonte: Predominance of antibody-resistant SARS-CoV-2 variants in vaccine breakthrough cases from the San Francisco Bay Area, California | Nature Microbiology

2 – As vacinas COVID-19 não esterilizam o vírus:

Fonte: The epidemiological relevance of the COVID-19-vaccinated population is increasing – The Lancet Regional Health – Europe

3 – As vacinas não reduziram as ondas em regiões ou países:

Fonte: Increases in COVID-19 are unrelated to levels of vaccination across 68 countries and 2947 counties in the United States

4 – As vacinas COVID-19 não reduzem transmissão dentro de casa:

Fonte: Community transmission and viral load kinetics of the SARS-CoV-2 delta (B.1.617.2) variant in vaccinated and unvaccinated individuals in the UK: a prospective, longitudinal, cohort study – The Lancet Infectious Diseases

5 – Na verdade, as vacinas já aumentam a chance de transmissão:

Fonte: Effectiveness of the Coronavirus Disease 2019 Bivalent Vaccine

6 – Recentemente, no início de 2023, a EMA – Agência Europeia de Medicamentos, assumiu, em documento oficial, que as vacinas COVID-19 não foram aprovadas com o objetivo de reduzir a infecção ou a propagação do vírus. “Os relatórios de avaliação da EMA sobre a autorização das vacinas destacam a falta de dados sobre transmissibilidade”, afirmou Emer Cooke, diretora executiva da entidade.

Fonte: 2023-10-18 Letter to MEP Marcel de Graaff – Request for the direct suspension of marketing authorizations

7 – E recentemente, em Julho de 2024, o estado do Kansas, nos EUA, iniciou um processo contra a Pfizer por enganarem o público, exatamente falando da falsa promessa de redução da transmissão. 

No item 24 da denúncia, o procurador geral do estado afirma:

24. A Pfizer disse que sua vacina contra a Covid-19 evitaria a transmissão, embora soubesse que nunca havia estudado o efeito de sua vacina na transmissão

  • Quando a FDA emitiu a Autorização de Uso Emergencial para a vacina COVID-19 da Pfizer em dezembro de 2020, a FDA relatou que não havia “evidências de que a vacina previna a transmissão do SARS-CoV-2 de pessoa para pessoa”. 
  • De acordo com o protocolo do estudo da Pfizer, avaliar a transmissão não era um objetivo do estudo.

Fonte: Kansas Attorney General Report

Sobre máscaras:

Também, no texto dos autores, há a afirmação da eficácia das máscaras. “Quando a ciência confirma unanimemente o acerto na corrida das vacinas na pandemia (e de todas as medidas complementares, dos usos das máscaras ao passaporte), o que leva o prefeito de São Paulo a assumir posições negacionistas em plena reeleição?”.

Contudo, a revisão sistemática com meta-análise da Cochrane sobre máscaras, feita com estudos “padrão ouro”, não indicam redução das infecções de SARS-COV-2 com o uso de máscaras.

Physical interventions to interrupt or reduce the spread of respiratory viruses – Jefferson, T – 2023 | Cochrane Library

Perguntas:

1 – Quais estudos vocês possuem que confirmem a eficácia dos passaportes sanitários para evitar transmissão?

2 – Quais estudos “padrão ouro”, das máscaras, em um nível tão bom quanto o da Cochrane, entendido como referência, comprova a eficácia das máscaras para evitar COVID-19? Nós não conhecemos.

Temos um prazo até quinta-feira, 3 de outubro, às 17 horas para fechar a matéria.

Passados mais 5 dias desde o prazo final dado por nós. Eles não responderam.

Comentário MPV

Eles não responderam. O motivo é simples: eles não possuem um artigo científico para sustentarem a eficácia das vacinas para evitar ou sequer reduzir a transmissão do vírus. Tanto é que a diretora da EMA – Agência Europeia de Medicamentos, precisou vir a público esclarecer que eles possuíam “falta de dados sobre transmissibilidade”. Além disso, o estado do Kansas, entre outros, está processando a Pfizer exatamente essa mentira.

De qualquer modo, esta checagem de fatos é altamente ilustrativa do que é e continua sendo a pandemia de COVID-19 desde o começo de 2020.

A regra é simples: se o que você afirma lubrifica a máquina dos lucros da big pharma, você não precisa comprovar nada do que diz com estudos científicos ou se basear neles. Não precisa ser verdade. Você simplesmente afirma. Além disso, você ganha espaço na grande mídia, ganha aplausos, homenagens e garante um futuro na carreira. Não importa que seja mentira. 

A desinformação disseminada de que as vacinas reduzem transmissão e protegem pessoas “ao redor” foi de especial valor para implantarem os passaportes, que só serviram para gerar demanda por vacinas (lucros), forçando o consumo do produto em quem nunca foi do grupo de risco da doença (em públicos que o risco supera o benefício). Quer se dar bem no ramo? Vá para onde o dinheiro está. É assim que funciona.

Outra postura especialmente notável é a sensação de poder dos que escolheram a vida fácil de se colocarem ao lado do maior lobby do mundo, o da big pharma. Essas pessoas acreditam fielmente que não precisam responder, nem explicar o que afirmam, mesmo que elas sejam de universidades públicas, pagas por todos nós, onde deveriam, como missão, defender a população dos interesses escusos das mega corporações como as  indústrias farmacêuticas.

E tudo isso é coroado com arrogância de se denominar a ciência encarnada: “Sou Ciência” é o Think Tank e “Escuta a Ciência” é o Podcast. Ou seja, eles são a ciência e falam pela ciência. Você é um cético dos panfletos de marketing e quer as evidências científicas? Segundo eles, você é nada mais, nada menos que um “lunático”.

E não param por aí. No artigo, finalizam pedindo “justiça, condenação e prisão”, além de “cassação da carteira profissional” de quem aponta o dedo e comprova, com evidências científicas, lógica e ética o jogo sujo de cartas marcadas das mega corporações farmacêuticas.

“Os crimes da pandemia de covid-19 precisam ser urgentemente julgados para que detenhamos o negacionismo e a barbárie” disseram.

A cereja do bolo é que, atrás de títulos, cargos e o sequestro do prestígio de conceituadas universidades para interesses duvidosos, ainda se colocam como pilares da verdade. Afirmaram ser de imensa importância o “combate à desinformação em todos os níveis e meios de comunicação”. Mas não responderam ou enviaram os links dos estudos comprovando o que dizem. Não há. É assim que se divulga ciência? Com achismos? 

O espaço permanece aberto, caso tentem responder. Aqui fazemos jornalismo honesto.