A carioca Ana Alice Tannuri, 52, cresceu em uma típica família de classe média no Rio de Janeiro. Fã de esportes, formou-se educadora física, um curso acessível financeiramente, na Universidade Gama Filho, uma instituição de ensino particular. 

Depois, seguindo o desejo de seu pai, voltou a estudar para o vestibular. Queria fazer medicina na Unirio – Universidade Federal do Estado do Estado do Rio de Janeiro, uma instituição pública e uma das universidades mais conceituadas do país. O pai, Jorge, técnico de comunicações na Embratel, queria que pelo menos uma das filhas fosse médica. A mãe, Ieda, era professora, e a irmã, Beatriz, formou-se em matemática. Ana Alice passou no concorrido vestibular e conseguiu atender ao desejo do pai. “O sonho da vida dele era ter uma filha médica”, afirmou.

Já no curso, gostou da medicina, seguiu especializando e se tornou cardiologista. Na UNIRIO, entusiasmada com a vida acadêmica, foi ganhando novos cargos. Tornou-se professora de medicina e chegou a ser chefe da UTI do hospital universitário. Posteriormente, buscando uma melhor remuneração na carreira, montou uma clínica para atendimento particular, mas não se distanciou totalmente do mundo acadêmico, dando aulas na cardiologia em uma carga horária menor, como professora convidada.

Sua vida seguia normal até a chegada da pandemia, que já aterrorizava o mundo. “Eu achei que moralmente eu deveria voltar aos hospitais”, afirmou. Quando o vírus atingiu o Brasil, foi trabalhar no hospital de referência Ronaldo Gazola, um centro que o município criou para ser um polo de atendimento COVID-19.

Na linha de frente, descobriu que a doença não era simples, mas sim que causava trombos. Com a equipe do Gazola, viu duas mortes estranhas. Uma das pacientes faleceu quando foi ao banheiro. “Isso é trombo”, concluiu. Ali, Dra Ana Alice entendeu que tentar fazer algo na fase avançada da doença não resolveria a pandemia. “A gente não tratava ninguém. A gente ficava intubando os outros”, relatou.

“Quando eu vi esses dois pacientes morrendo e que aquilo era trombo, foi no mesmo dia que eu saí do hospital porque eu fui contaminada”, contou.

Preocupada com sua própria Covid-19, começou a consultar colegas para trocar experiências. Acompanhou as orientações sobre tratamento precoce com o Dr Edimilson Migowski, professor de infectologia da UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Assim aprendeu a tratar. O primeiro objetivo era lidar com a doença dela mesma. “Eu fui a primeira paciente de tratamento precoce”,  afirmou.

Ela continuou a acompanhar as últimas novidades. “Comecei a ler todos os artigos”, afirmou. Interessada e vendo que poderia ajudar muito mais com atendimento ambulatorial, assistiu as lives da Dra Marina Bucar, médica e professora de medicina brasileira radicada na Espanha. Com Bucar, aprendeu mais sobre corticóide e anticoagulante. “Eu fiz em mim mesma. Estava na fase inflamatória”, afirmou.

A segunda paciente foi sua prima. A terceira, sua filha Carolina, de 17 anos. Satisfeita com os resultados nela e em sua própria família, seguiu tratando, de modo gratuito, todos que a procuravam. Atendeu muitos pacientes de diversos estados distantes, por telemedicina, pois seu número de whatsapp viralizou. “Eu achava que era uma guerra, como eu acho até hoje. Eu precisava ajudar. Se eu não sabia pesquisar drogas que pudessem ser reposicionadas, se eu não sabia fazer melhor, então eu achava que tinha que ajudar de alguma forma”.

Animada com os resultados, tentou explicar para colegas dos hospitais do Rio. Seus conhecimentos foram rejeitados. “A gente não faz isso aqui”, foi o que ouviu de um colega médico. Insistindo, Ana Alice viu se formar, entre colegas de faculdade, “um verdadeiro tribunal de inquisição”, segundo suas próprias palavras. “Isso não tem lógica. Você está ficando maluca”, disseram, mesmo quando ela dizia seus números muito animadores.

Ana já soma 1500 pacientes Covid tratados. Possui apenas dois óbitos, uma taxa de fatalidade baixíssima. Sua primeira perda foi o pai de uma ex-secretária, com cerca de 65 anos. O óbito foi na variante Covid mais grave de todas, a cepa Gamma, também chamada de P1, primeiramente identificada em Manaus, ainda em 2021. O paciente, hipertenso e calvo, não fez o tratamento completo. Tomou apenas um quarto da dose de corticoide na fase inflamatória. “Alguém interferiu”, lamentou Ana Alice.

A segunda perda foi um amigo da infância. “Casado com minha amiga. Eu apresentei os dois. Eu era a madrinha”, afirmou. O casal morava em casas separadas. O amigo era engenheiro e tinha perdido o emprego pouco antes do vírus chegar ao país. Durante a pandemia, investiu em vários projetos. Entre eles, tentou montar uma cervejaria, “mas as coisas não estavam dando certo”, afirmou.

Quando seu amigo ficou doente, ele entrou em contato com ela, que fez a receita baseada nos protocolos do Dr Flavio Cadegiani para a cepa Gamma. Nesta cepa, eram vários medicamentos no cocktail. Ele estava já no quinto dia de sintomas.

Ana Alice pediu para ele entrar em contato diariamente para comunicar como estava a evolução, mas ele não respondia. A esposa, morando em outra casa, achava que ele estava brigado com ela. “Mandei um monte de áudios, ele não ouviu”, afirmou a médica.

Depois que ela conseguiu contato, descobriu que ele estava tomando apenas ivermectina, uma pequena parte do cocktail. Ana Alice, sabendo que as farmácias, durante as altas das ondas de infecções, às vezes faltavam medicamentos, fez uma oferta. “Você quer que eu leve remédios para você?”, perguntou, sem obter respostas.

Com hipóxia, foi internado em 12 de março de 2021. Morreu pouco mais de um mês depois, em 19 de abril. “Ele tomou a maldita dose de 6 miligramas de dexametasona no hospital”, explicou Ana Alice, ressaltando que é uma dose muito baixa.

“Eu sabia que ele não nadava em dinheiro, mas eu não sabia que ele estava sem dinheiro para comprar remédio”, lamentou a Dra Ana Alice, explicando porque seu amigo não se medicou. “Ele não demonstrava que se sentia humilhado”.

Dra Ana Alice não palestrou no 2o Congresso Mundial MPV – Médicos pela Vida – World Council for Health, ocorrendo agora em Foz do Iguaçu. Ela foi ao congresso para ouvir as palestras, saber das últimas novidades e trocar conhecimentos com outros médicos.

No lobby de entrada, Dra Ana Alice, ao contar para colegas sua experiência com tratamento Covid-19, mostrou, no celular, um trecho do vídeo que fez, com fotos dela e seu amigo. O vídeo possui uma música como trilha: “Amigo”, de Roberto Carlos.

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