Mais uma vez, voltemos à questão dos diagnósticos psiquiátricos, já que eles são a base de como nossa sociedade entende e identifica o mal estar psíquico e o fundamento dos tratamentos que se seguem.

Como já dito aqui, a base dos diagnósticos hoje utilizados nos serviços de saúde mundo afora, nos cursos de medicina e psicologia, e inclusive nos meios de comunicação de massa, nos testes de internet e nas conversar de mesa de bar é o livro não à toa conhecido como a “bíblia” da psiquiatria: o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM, por sua sigla em inglês) da Associação Americana de Psiquiatria.

Sua primeira edição, de 1952, continha 102 diagnósticos e era influenciada pelo que se costuma chamar de teoria “psicodinâmica” na psicologia, ou seja, uma visão que deriva da psicanálise e está relacionada a teorias sobre o funcionamento psíquico em geral.

Em 1980, na terceira edição do DSM, o manual passou a aderir aos princípios que o orientam hoje, em que uma abordagem pretensamente “a-teórica” é combinada com a categorização de diagnósticos por listas de sintomas.

Ou seja, a ideia que procuram vender é que criar categorias diagnósticas a partir de pontuação de sintomas implica em uma visão na qual não há uma teoria subjacante sobre a mente humana. Contudo, é notório que a visão subjacente é a biologizante, em que os “transtornos mentais” são frutos de anomalias neuroquímicas, e que estas podem ser “corrigidas” por meio de remédios psiquiátricos. Teorias que não se comprovaram desde que foram postuladas há mais de meio século.

A última edição do DSM contém mais de 300 diagnósticos diferentes.

O psiquiatra Robert Spitzer é reconhecido como um dos mais influentes da história por ter sido quem conduziu a “força tarefa” de nove pessoas que elaborou o DSM-3. Por isso, quando o psicólogo James Davies decidiu investigar o que motivou um aumento tão grande do número de diagnósticos listados no DSM, ele resolveu entrevistar Spitzer. Isso porque, como ele disse, havia muito pouca evidência documental retratando o processo de elaboração do manual.

Davies gravou a entrevista, e reproduzo aqui trechos citados por ele nessa palestra. A primeira pergunta que fez a Spitzer foi qual a razão para a inclusão dos 80 novos diagnósticos presentes no DSM-3 em relação à edição anterior. Eis o diálogo que seguiu:

“Spitzer: Os transtornos que incluímos não eram efetivamente novos no campo. Eram principalmente diagnósticos que os clínicos utilizavam na prática mas que não eram reconhecidos pelo DSM… então, ao incluí-los no DSM lhes demos reconhecimento profissional.

Davies: Então, presumivelmente, estes transtornos foram descobertos em um sentido biológico? Por isso foram incluídos, certo?

Spitzer: Não, de forma alguma. Há apenas alguns transtornos mentais incluídos no DSM que são reconhecidos por terem uma clara causa biológica. Estes são conhecidos como os transtornos orgânicos (por exemplo, mal de Alzheimer e doença de Huntington). Eles são poucos e raros.

Davies: Então, deixe-me esclarecer isso, não há causas biológicas descobertas para muitos dos diagnósticos restantes presentes no DSM [os restantes sendo cerca de 95% deles]?

Spitzer: Não é para muitos, é para todos! Nenhum marcador biológico foi identificado.

Davies: Então, se não há causas biológicas conhecidas, qual a base para a inclusão de transtornos mentais no DSM? Que outra evidência fundamenta sua inclusão?

Spitzer: Bem, a psiquiatria tem que procurar por outras coisas – comportamentais, psicológicas – nós temos outros procedimentos.”

Davies então perguntou quais eram esses outros procedimentos.

“Spitzer: Acredito que nosso princípio geral era de que se um número suficientemente grande de clínicos sentisse que um conceito diagnóstico era importante em seu trabalho então era provável que adicionássemos como uma nova categoria. Era essencialmente isto. Tornou-se uma questão de quanto consenso havia para reconhecer e incluir um transtorno particular.

Davies: Então era um acordo que determinava o que entrava no DSM?

Spitzer: Está certo, era essencialmente assim que ocorria.”

E, bem, essa é a “ciência” da coisa: um acordo entre os detentores do poder psiquiátrico. Mas é assim mesmo, tão escancaradamente absurdo o processo? Davies estudou os arquivos do DSM em Washington e nos traz informações muito esclarecedoras sobre esses “acordos”.

O “transtorno de personalidade autodestrutiva”

Comecemos com esse curioso diagnóstico denominado Self defeating personality disorder (SDPD), que poderíamos traduzir como transtorno de personalidade autodestrutiva.

A professora de psicologia na Harvard Kennedy School, Paula J. Caplan, fazia parte do time de consultores do DSM 3. Ela procurou argumentar com Spitzer que esse diagnóstico novo não deveria ser incluído no manual, em primeiro lugar porque suas características eram muito semelhantes àquelas que poderiam ser apresentadas por mulheres vítimas de violência. E, portanto, o diagnóstico poderia ser utilizado tanto para patologizar as mulheres vítimas de violência, como para inocentar os agressores, já que estes poderiam argumentar que estavam apenas fazendo o que essas mulheres portadoras de um transtorno queriam. A culpa, mais uma vez, seria do transtorno.

Spitzer e a equipe decidiram manter o diagnóstico, considerando esse “argumento feminista” de Caplan como falso. A professora, então, decidiu analisar quais eram os fundamentos “científicos” para a inclusão do diagnóstico, e eram dois:

Um deles era uma consulta a professores de uma universidade – que já de antemão concordavam com a criação do diagnóstico. Foi apresentado a eles um conjunto de antigos estudos de caso, e todos concordaram que deveria ser atribuído àqueles casos relatados o diagnóstico de SDPD.

Como apontou Caplan, tudo o que isso provava era que um grupo de psiquiatras da mesma instituição atribuiu o mesmo rótulo diagnóstico a um determinado grupo de comportamentos. E nada mais.

O segundo fundamento era ainda mais absurdo: um questionário foi enviado a um seleto número de membros da American Psychiatric Association perguntando se o diagnóstico deveria ser incluído. 11% destes disseram que sim. E foi o que bastou pra Spitzer e sua equipe.

E estava criado o diagnóstico de Transtorno de Personalidade Autodestrutiva.

Mas e todos os outros diagnósticos?

Seria esse diagnóstico uma exceção? Davies tomou uma citação de um dos membros da força-tarefa do DSM 3 que figura em um artigo de Marcia Angell de 2009 intutulado “Drug companies & doctors: a story of corruption”. Ali, Theodore Million diz sobre o processo de elaboração dos diagnósticos:

Havia muito pouca pesquisa sistemática, e muito da pesquisa que existia era uma mistureba – esparsa, inconsistente e ambígua. Acredito que a maioria de nós reconheceu que a quantidade de ciência boa e sólida sobre a qual tomávamos nossas decisões era bem modesta.

Ele questionou Spitzer em relação a essa citação quando conversou com ele cara a cara. A resposta de Spitzer o surpreendeu:

“Bem, é verdade que para muitos dos diagnósticos acrescentados não houve uma tremenda quantidade de pesquisa, e certamente não houve pesquisa em relação à forma particular como definíamos esses transtornos. No caso da citação de Million, acredito que esteja se referindo principalmente aos transtornos de personalidade… mas, novamente, é certamente verdade que a quantidade de pesquisa validando os dados em relação à maioria dos distúrbios psiquiátricos é, de fato, muito limitada.”

Então, Davies insiste:

Então você está dizendo que houve pouca pesquisa não apenas sustentando a inclusão de novos diagnósticos, mas também em relação a como esses diagnósticos deveriam ser definidos?”

E Spitzer:

“Há muito poucos transtornos cuja definição foi resultado de dados de pesquisa específicos”.

Surpreso com essa admissão, Davies decidiu questionar o segundo em comando da força-tarefa, Donald Klein. Eis a conversa entre eles:

Klein: “Claro, nós tínhamos muito pouco no caminho dos dados, então fomos forçados a confiar no consenso clínico, que, admitidamente é uma forma pobre de se fazer as coisas. Mas era melhor do que qualquer outra coisa que tivéssemos.

Davies: “Mas, sem dados para guiá-los, como esse consenso era atingido?”

Klein: “Nós basicamente discutíamos exaustivamente. Tínhamos um debate de três horas. Havia cerca de doze pessoas sentadas à mesa, normalmente havia alguém presidindo e alguém tomando notas. No final de cada reunião haveria uma distribuição de casos. E na próxima reunião alguns concordariam com a inclusão, e os demais continuariam debatendo. Se as pessoas ainda estivessem divididas, a questão seria evenualmente decidida por meio de uma votação.”

Davies: “Uma votação, sério?”

Klein: “É claro, assim que acontecia.”

E outro membro da força-tarefa, Henry Pinsker, quando questionado sobre a legitimidade de uma votação para decidir sobre a inclusão de um diagnóstico, disse:

“Nunca tivemos nenhuma questão em relação a proceder dessa forma. Eu não tinha nenhuma reserva quanto a trabalhar dessa forma”.

Outra entrevista realizada por Davies sintetiza bem o espírito científico das reuniões da força-tarefa do DSM. Ele falou com Rennie Garfinkel, à época uma recém-formada psicóloga que estava fazendo um estágio na American Psychiatric Association e caiu de paraquedas nas reuniões. O que ela disse a Davies, trinta anos depois, foi:

Você tem que entender que o que eu via acontecendo nesses comitês não era científico – lembrava mais um grupo de amigos tentando decidir onde queriam ir para jantar. Uma pessoa diz ‘eu quero comida chinesa’, e outra diz ‘não, não, eu estou com mais vontade de comida indiana’, e, finalmente, depois de um tanto de discussão e um vai e vem colaborativo, todos decidem ir comer comida italiana.”

E em outro momento, diz:

Em uma ocasião eu estava sentada em uma reunião da força-tarefa e eles estavam discutindo se um determinado comportamento deveria ser classificado como um sintoma ou um transtorno em particular. E enquanto a conversa seguia, para meu grande espanto um membro elevou a voz, ‘Ah não, não, nós não podemos incluir esse comportamento como sintoma porque eu faço isso.’ E assim foi decidido que aquele comportamento não seria incluído porque, presumivelmente, se alguém da força-tarefa faz, deve ser perfeitamente normal.”

Assim, podemos ver ruir ridiculamente o castelo de cartas da “ciência” por trás do DSM, a famosa bíblia da psiquiatria. A imensa patologização de todos os espectros do comportamento humano, que apenas ganhou terreno nas versões seguintes do DSM, está sustentada nas decisões arbitrárias de um punhado de senhores – diga-se de passagem, muito bem relacionados com a bilionária indústria farmacêutica que cria os tratamentos para as doenças “descobertas” por eles.


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