Estou com pouco tempo para escrever um post mais detalhado, mas como a imprensa brasileira está reverberando um estudo que supostamente mostraria que o “uso de hidroxicloroquina durante pandemia causou 17 mil mortes em seis países” não posso deixar de comentar. O estudo é esse aqui:
E ele não traz qualquer informação nova sobre o efeito da hidroxicloroquina sobre mortalidade em pacientes de covid simplesmente porque não é um estudo sobre o efeito da hidroxicloroquina em pacientes de covid de qualquer tipo. O novo estudo toma como fato o resultado dessa metanálise antiga:
De abril de 2021 que encontrou um aumento de 11% de mortalidade (OR=1.11, 95% IC=[1.02,1.20]) para pacientes de covid que usaram hidroxicloroquina. A novidade do novo estudo é apenas uma estimativa da mortalidade hospitalar (em geral) entre pacientes de covid e uma estimativa da proporção de pacientes de covid hospitalizados usando hidroxicloroquina durante a primeira onda de covid em 6 países. A estimativa das mortes que teriam sido “causadas pela hidroxicloroquina” vem então de uma conta de quarta série (foto que ilustra o post) em que aquele 11% de aumento de mortalidade encontrado na metanálise antiga é tomado como fato (o fator OR_{HCQ-mortality} que aparece na fórmula da foto é o OR=1.11 encontrado na metanálise antiga, referência [12] do novo artigo).
Essa metanálise antiga é boa? Sim, mas ela não dá nenhuma informação sobre o que chamávamos de “tratamento precoce”. Essa metanálise dá 73.7% de peso ao RECOVERY trial e 15.2% de peso ao SOLIDARITY trial (total = 88.9%) que são estudos que usaram doses altas de hidroxicloroquina em pacientes hospitalizados. O peso total atribuído a estudos com pacientes ambulatoriais (o que poderia ser chamado “tratamento precoce”) é de apenas 0.2%. Para deixar claro: essa atribuição de pesos não é “sacanagem” dos autores da metanálise. Trata-se de um método padrão de atribuição de pesos (inverse variance weighting) que dá maior peso aos estudos com estimativas de efeito mais precisas (intervalos de confiança menores). Ocorre que ao adotar um critério de inclusão que permite tanto pacientes hospitalizados como ambulatoriais, os estudos grandes em pacientes hospitalizados com muitas mortes vão ganhar um peso grande enquanto os estudos em pacientes ambulatoriais que tem pouquíssimas mortes vão entrar com peso minúsculo.
O aumento de 11% de mortalidade encontrado na metanálise antiga é correto? É uma estimativa razoável do efeito do uso de hidroxicloroquina em doses altas em pacientes hospitalizados graves (as doses usadas no RECOVERY e SOLIDARITY). Não tem absolutamente nada a ver com qualquer coisa proposta pelos defensores do “tratamento precoce”.
A estimativa de 17 mil mortes em seis países encontrada no novo estudo é correta? Isso depende de saber se os hospitais na vida real estavam usando as doses altas usadas nos estudos RECOVERY e SOLIDARITY em pacientes graves. Se não estavam, a estimativa encontrada no novo estudo não vale nada.