Há poucos dias foi publicada no Journal of Medical Virology uma metanálise de estudos randomizados controlados avaliando o uso de antiandrogênicos para o tratamento de covid. A revista é a número 2 na área de virologia de acordo com o Journal Citation Reports, número 1 de acordo com o Google Scholar e número 10 de acordo com o Scimago. Menciono isso apenas porque algumas pessoas que comentam pesquisa durante a pandemia são obcecadas por essas métricas, não porque elas sejam particularmente relevantes. Na verdade, a obsessão por métricas e rankings costuma ser sugestiva de que o indivíduo não é sério. Falemos então do conteúdo, que é o que importa.
Para dar um pouco de contexto sobre o assunto, um dos principais proponentes da teoria de que drogas antiandrogênicas possam ser usadas no tratamento de covid é o Dr. Flavio Cadegiani. Junto com seus colaboradores (como o Dr. Ricardo Zimerman e o Dr. Carlos Wambier), Cadegiani realizou diversos estudos randomizados controlados para o tratamento de covid usando drogas antiandrogênicas. Os resultados positivos mais extraordinários foram obtidos com a proxalutamida, uma droga nova produzida pela empresa chinesa Kintor. Em estudos randomizados controlados a proxalutamida reduziu a mortalidade de pacientes hospitalizados por covid em mais de 70%.
Cadegiani sofreu uma campanha de difamação coordenada por parte da mídia e pessoas sem noção que são falsamente vendidas para o público como “especialistas”. Essa campanha levou a processos julgados pelos Conselhos Regionais de Medicina do estado do Amazonas e do Rio Grande do Sul, nos quais Cadegiani foi recentemente inocentado por unanimidade. Eu demonstrei como é possível verificar através dos dados públicos de SRAG do opendatasus que a mortalidade hospitalar despenca no Hospital Regional José Mendes em Itacoatiara durante a realização do estudo com a proxalutamida (quase todos os pacientes do estudo nesse hospital estavam no braço tratado), confirmando o depoimento do Dr. Michael do Nascimento Correia, médico que coordenou a pesquisa nesse hospital. Também demonstrei os erros cometidos pelo psicólogo e auto-denominado “detetive de dados” Nick Brown na sua análise de dois artigos de Cadegiani sobre antiandrogênicos.
Vamos falar então da nova metanálise. Antes de mais nada, é importante mencionar que o termo “antiandrogênico” se refere a uma classe grande de medicações, contendo várias subclasses com mecanismos de ação bastante diferentes. Não se espera que todas as subclasses sejam eficazes nem que todas as drogas de uma mesma subclasse tenham a mesma eficácia. A nova metanálise possui em seu suplemento (figura suplementar 2) uma análise de eficácia separada por subclasse de droga antiandrogênica. Não sou a pessoa certa para comentar sobre possíveis mecanismos de ação de subclasses diferentes de antiandrogênicos, então me aterei à metanálise principal e farei algumas outras análises que não foram consideradas no artigo.
A metanálise principal considera o desfecho de mortalidade por todas as causas e aparece na figura 2 do artigo reproduzida acima. Como não consegui reproduzir os números exatos que aparecem no artigo, resolvi refazer a extração dos dados e a metanálise [1]. Como se vê no forest plot abaixo, os resultados são quase idênticos aos obtidos no artigo: um risco relativo de 0.38 (correspondente a uma eficácia de 62%), com um intervalo de confiança de 0.25 a 0.57 (versus um risco relativo de 0.37 com intervalo de confiança de 0.25 a 0.55 no artigo).
É importante que sejam feitas algumas observações sobre as limitações dessa metanálise: como estamos combinando estudos com muitas drogas diferentes, a estimativa combinada de eficácia não deve ser entendida como uma estimativa da eficácia de uma intervenção clínica específica (como normalmente se vê em metanálises a la Cochrane), mas sim como uma estimativa da média ponderada da eficácia de diversas intervenções diferentes (a magnitude da heterogeneidade obtida I2=37% é considerada moderada, porém as intervenções em questão são muito distintas entre si). Essa característica dos dados também torna sem sentido o uso dos diagramas de funil para avaliar possível viés de publicação (ou non-reporting bias).
A metanálise incluiu três estudos de Cadegiani e seus colaboradores: um estudo com a proxalutamida em pacientes ambulatoriais do sexo feminino, um estudo com a proxalutamida em pacientes hospitalizados de ambos os sexos (o famoso estudo realizado no estado do Amazonas e no Rio Grande do Sul) e mais um estudo com a dutasterida em pacientes ambulatoriais do sexo masculino. O estudo com a proxalutamida em pacientes ambulatoriais do sexo masculino que foi retratado pela revista Frontiers não foi incluído na metanálise, diferentemente do que foi insinuado por algumas pessoas no twitter. Como eu demonstrei aqui, a retratação desse estudo foi devida a um erro do parecerista, mas os autores da metanálise não devem saber disso e não incluíram. Sua inclusão faria quase nenhuma diferença na metanálise principal, já que o estudo teve apenas duas mortes no grupo controle e entraria com um peso muito pequeno.
O estudo de Cadegiani com a proxalutamida em pacientes hospitalizados obviamente entra com um peso grande na metanálise (cerca de 30%), de modo que aqueles que desconfiam desse estudo não podem confiar no resultado da metanálise. Dessa forma, resolvi refazer a metanálise sem os estudos de Cadegiani.
Como se vê no forest plot acima, removendo os estudos de Cadegiani da metanálise obtemos uma estimativa de risco relativo de 0.48 (ou 52% de eficácia), com um intervalo de confiança de 0.34 a 0.69. Os resultados continuam extremamente significativos clinicamente e estatisticamente. Na ilustração abaixo comparamos os resultados dos estudos de Cadegiani com os outros. Nota-se aí que a proxalutamida é consideravelmente mais eficaz que a média das outras drogas.
A metanálise incluiu também o sabizabulin, uma droga que havia demonstrado uma eficácia de mais de 50% para redução de mortalidade em pacientes hospitalizados de covid em estudo randomizado controlado publicado no NEJM Evidence. Quando os resultados do sabizabulin foram publicados, os indivíduos que difamam Cadegiani resolveram fazer de conta que a droga não tem absolutamente nada a ver com a proxalutamida, embora a droga tenha sido estudada para o tratamento de câncer de próstata, assim como a proxalutamida. É verdade, no entanto, que o sabizabulin é uma droga com um mecanismo de ação bem diferente da proxalutamida e possui algumas semelhanças com a colchicina. Vale notar aqui que, embora a colchicina aparente ter alguma eficácia no tratamento de covid, não é nada comparável à eficácia demonstrada pelo sabizabulin.
Como o sabizabulin também entra com um peso grande na metanálise (cerca de 25%), para aqueles que duvidam tanto dos estudos de Cadegiani quanto da relevância da ação antiandrogênica do sabizabulin no tratamento de covid, vale a pena ver o que acontece se removemos tantos os estudos de Cadegiani quanto os estudos usando sabizabulin da metanálise. O resultado pode ser visto na figura abaixo: uma estimativa pontual de risco relativo de 0.56 (correspondente a 44% de eficácia), com intervalo de confiança de 0.34 a 0.94 (p-valor = 0.03). O p-valor não é mais tão baixo como antes, mas fica abaixo da usual convenção de 0.05 e a magnitude do efeito é bem relevante.
Na figura abaixo comparamos os três grupos de estudos: o grupo formado pelos estudos de Cadegiani, o grupo formado pelos estudos com sabizabulin e o grupo formado pelo restante.
A conclusão é que, mesmo eliminando os estudos com resultados extraordinários de Cadegiani usando a proxalutamida e os estudos com resultados também excelentes envolvendo o sabizabulin, temos evidência moderada [2] e baseada apenas em estudos randomizados controlados de que algumas drogas antiandrogênicas são eficazes para redução de mortalidade em pacientes de covid. Evidentemente, o grupo que difamou Cadegiani nunca vai se convencer, pois caso um dia entendam o que fizeram serão assombrados para sempre pelas dezenas ou centenas de milhares de mortes na segunda onda de covid no Brasil que poderiam ter sido evitadas.
Notas de rodapé
[1] Utilizei o modelo de efeitos aleatórios com inverse variance weighting para estimação do efeito combinado e o tradicional moment-based estimator de DerSimonian and Laird para a heterogeneidade inter estudos (provavelmente o mesmo utilizado no artigo). As análises foram realizadas no R, pacote meta.
[2] Envolvendo alguns estudos com baixo risco de viés e outros com algumas preocupações, de acordo com a análise feita pelos autores da metanálise (veja figura 1 no suplemento).