Sempre me interesso em ler textos de pessoas que têm perspectivas diferentes das minhas. Acredito na importância de considerar ideias contrárias e estar aberto a mudar de opinião diante de novas evidências. Isso demonstra uma postura humilde e receptiva ao aprendizado.

Eu já produzi alguns textos com objetivo de explicar tratamentos para COVID, utilizando inclusive analogias para tornar o assunto mais compreensível para todos. No entanto, no último domingo, deparei-me com um texto do Instituto Questão de Ciência sobre o uso de hidroxicloroquina para tratamento precoce da doença. O artigo intitulado “Da precognição ao tratamento precoce” tem como foco a hidroxicloroquina.

Desde o início da pandemia, este instituto tem sido veementemente contrário a esse tratamento. Hoje, há uma tonelada de evidências deste medicamento contra a COVID-19.

Portanto, ao iniciar a leitura, minha pergunta e curiosidade era: como eles vão argumentar e bater o martelo que o tratamento é ineficaz?

Métodos de desqualificação

Ao longo de toda pandemia, já li diversos textos em que os autores tentam elaborar argumentos contra o “tratamento precoce” com hidroxicloroquina. Diante disso, já dá até para catalogar os métodos.

Método 1: confusãozinha

Confunde-se estudos em que inicia-se o tratamento nos primeiros dias de sintomas com estudos que iniciam em pacientes hospitalizados ou intubados. Algo assim: “olha, o tratamento precoce não funciona”, e dá link para um estudo em pacientes que começou na hora da extrema unção. Bem. fica feio esse pessoal acostumado a discutir ciência fazer isso, né?

Quem já fez uma dessa foi Leo Costa, que vende cursos. Sim, ele vende cursos ensinando a ler e interpretar estudos. Ele confundiu estudos em profilaxia com hospitalizados. Ficaria feio o “Questão de Ciência” repetir essa, não é?

Método 2: não dar link para estudos

Um exemplo de um texto elaborado, pensado, que fez isso, foi o escrito por Letícia Cesarino, professora e pesquisadora na Universidade Federal de Santa Catarina. Ela escreveu um texto inteiro, imenso, falando de tratamento precoce com hidroxicloroquina sem dar um único link sequer para um estudo de… tratamento precoce com hidroxicloroquina.

Método 3: ciência por slogans

Um site chamado “Direito em comprimidos”, formado por juízes e procuradores, publicou um texto inteiro contra o tratamento precoce, que eles chamam de “kit covid”. Sem darem link para nenhum estudo, escrevem: “tratamentos cuja ineficácia já foi comprovada”.

Bem. É o que estão repetindo exaustivamente por aí e eles não são especialistas da área. E devem ser pessoas boas, com fé na humanidade. Imaginam que jamais alguém mentiria sobre isso por algum motivo, com tanta gente que morreu sem tratamento.

Método 4: estudos positivos

Isso o próprio Instituto Questão de Ciência já fez. Foi no texto: “Tudo que é preciso saber sobre cloroquina e tratamento precoce“, publicado em maio de 2021.

Para argumentarem que tratamento precoce não funciona, deram link para o estudo Skipper et al. É um estudo randomizado, duplo cego e publicado em revista de alto fator de impacto. Mas qual o problema de usar esse estudo para dizer que não funciona?

Deram placebo para 234 pessoas infectadas. Destas, 8 precisaram ser internadas. E deram hidroxicloroquina para outras 231 pessoas infectadas. Destas, apenas 4 precisaram ser internadas.

Ou seja, os dados mostram que os pacientes que tomaram hidroxicloroquina se saíram melhor do que os que tomaram placebo. Houve 49,4% menos hospitalizações no grupo HCQ do que no grupo controle.

Portanto, esse estudo, isoladamente, prova um monte de coisas, menos que hidroxicloroquina é ineficaz. Bem. Depois de tantas críticas que receberam na época, essa eles não poderiam repetir, não é?

Método 5: alucinação total

Logo no começo da pandemia, publicaram, na Lancet, um estudo fraudulento contra a hidroxicloroquina. Virou manchete no mundo todo. O estudo provava que quem tomava hidroxicloroquina tinha mais chance de morrer. Só houve um problema: o estudo foi uma farsa. “Fraude monumental”, afirmou Richard Horton, o editor chefe do periódico. Duas semanas depois, o estudo foi despublicado.

E logo depois, duas pessoas com currículo de peso, Márcio Sommer Bittencourt, Mestre em saúde pública pela Universidade Harvard, e Guilherme Lichand, Professor de economia da Universidade de Zurique, escreveram na Folha de S. Paulo um artigo explicando para leigos porque a polêmica desse medicamento persistia.

Para conseguirem fazer o texto fazer sentido, precisaram entrar no modo alucinação. Eles escreveram que o estudo fraudulento “sugeria que cloroquina tinha efeitos positivos”.

Isso mesmo. Inverteram o resultado. O mestre em Harvard e o professor de Zurique não sabem sequer ler estudos. “Há pessoas que passam vergonha em público e há os autores desse artigo na Folha de São Paulo para os quais precisamos criar toda uma nova categoria”, afirmou Daniel Tausk, professor da USP.

Antes, a própria Folha já havia noticiado. “The Lancet faz retratação de estudo que apontava maior risco de morte associado à hidroxicloroquina“. É mole?

A tarefa hercúlea do IQC

Esses métodos anteriores não davam mais. Todo mundo, até leigos, já entenderam. Não cola repetir. O Instituto Questão de Ciência precisava inovar.

Mas repara no tamanho do problema. Como escrever um texto sobre tratamento precoce sem dar link para estudos de tratamento precoce, sendo você um site que discute ciência e precisa dar as referências?

Eu explico o problema. Da hidroxicloroquina contra a COVID-19, existem hoje, no total, 393 estudos. Destes, 36 são em tratamento precoce. Ou seja, iniciando a medicação nos primeiros dias de sintomas.

Entre esses 36 estudos em tratamento precoce, 15 medem um desfecho que não dá margem para interpretação: a mortalidade. O maior problema? Todos os 15, por unanimidade, são positivos.

Explicação do gráfico: na primeira coluna, na esquerda, o nome do principal autor de cada estudo. Na segunda coluna, a porcentagem de redução de mortalidade medida. Na última linha, abaixo, a soma total dos estudos. Entre as 19.762 pessoas tratadas, foram apenas 86 óbitos. Entre as 32.978 pessoas que não receberam a medicação, foram 841 óbitos. A redução total constatada é de 72%.

Como você escolhe um desses e dá link para falar que não funciona? Querem ver como a coisa fica pior ainda nessa tarefa?

Esses são os estudos randomizados de tratamento com hidroxicloroquina nos primeiros dias de sintomas (tem alguns que são um pouco mais do que 5 dias). Todos, também, por unanimidade, mostram redução no desfecho da hospitalização. Bem, eles coincidem com os estudos observacionais, como era esperado. (Mande este link para quem diz que estudo observacional não prova eficácia e veja o suposto especialista gaguejar).

Todos os estudos ambulatoriais da HCQ medindo o desfecho hospitalização. Como exemplo, olhe a linha Skipper. Na HCQ, internou 4 de 212. No controle, internou 8 de 211. Olha o gráfico com a linha vertical. Está vendo que todos estão à esquerda da linha? Significa que em todos eles, quem tomou HCQ se saiu melhor. Por unanimidade. Como no total, são menos pessoas, o desfecho não é mortalidade, mas hospitalizações.

O time hidroxicloroquina entrou em campo para jogar com o time placebo seis vezes. Venceu as seis partidas.

A solução do Questão de Ciência

E deram um link. Para o primeiro estudo de Didier Raoult, professor na França, feito com apenas seis pacientes. E ficaram batendo neste estudo, como se não tivéssemos mais 36 estudos nessa condição.

Era um estudo prévio. Basicamente a mensagem era: “é por este caminho que vamos”. Nada mais que isso. Tanto é que outros estudos foram feitos. E qual foi o argumento do autor no IQC? “Muita gente que, pelo menos até então, tinha carreira e currículo respeitáveis caiu de joelhos (ou de quatro) diante do druida de Marselha, e embora a maioria tenha, com o tempo, se levantado, sacudido a poeira e saído de fininho, há uma minoria voluntariosa que parece ter descoberto o sentido da vida na postura quadrupedante”.

A pandemia toda foi assim:
– Saiu mais um. Positivo.
– Saiu outro, do Irã, positivo.
– Veio mais um, da França, positivo.
– Outro positivo, dos EUA
– Mais um. Mais um, outro, mais um, outro, mais um.

Num total de 15 vezes. Ou seja, a bizarrice do argumento é que depois de dúzias de estudos, todos confirmando, um atrás do outro, ele acha que as pessoas estão convencidas por causa do estudo prévio de Raoult. Pode?

E o autor parte para análise freestyle

Para dar um ar de científico, Carlos Orsi, o autor, começa a dar links para estudos científicos. Obviamente, mais nenhum de tratamento precoce com hidroxicloroquina.

Ele dá link para a bizarrice de um estudo que é uma tentativa de replicar resultados sobre pressentimento do futuro por meios paranormais. A partir daí, ele começa a discutir métodos.

Depois, numa ameaça de começar a alucinar, ele fala do “efeito gaveta”. Sabe o que é isso? “Esse efeito costuma ser explicado como a preferência de periódicos científicos (e dos patrocinadores de estudos) por resultados positivos”, explica o próprio autor.

Desinformado, ele esquece que publicaram até fraudes para matar a HCQ. Além disso, você sabia que existem estudos em pacientes hospitalizados em que morreu mais gente no grupo HCQ do que no placebo? Sabe como conseguiram? Fizeram estudos em overdose. Mais de um. Foi um efeito gaveta ao contrário. Viraram manchetes no mundo todo!

E parte para estudos da psicologia

Já pirando na batatinha, depois de falar de “crise de reprodutibilidade” (onde há crise de reprodutibilidade da hidroxicloroquina se todos os estudos são positivos?), o autor parte para falar de resultados forçados em estudos da psicologia.

Por curiosidade, vocês sabem quais são os desfechos medidos em estudos da psicologia? O entrevistador pergunta coisas assim:

– Quantas vezes você ficou ansioso ontem?
– Você sentiu melhora na sua empatia na semana passada? Quanto?
– Sua satisfação com a vida e felicidade melhoraram ou pioraram?

Entendem como coisas assim abrem para vieses de interpretação, pela natureza dos próprios estudos?

Repetindo o gráfico da conta geral

Olha a última linha: dos 19.762 pacientes tratados, morreram 86 pessoas.

Dos 23.978 não tratados, morreram 841.

Ou seja, uma redução de 72% em mortes. Não é 5 ou 10%. 

Como você delira e compara isso com desfechos de interpretação?

Não existe o “acho que está morto”, ou “acho que está vivo”.

Ou as pessoas estão vivas ou estão mortas. Ou estão mudas, inertes, geladas, no velório, cremadas ou enterradas, ou estão andando por aí, conversando, ou em casa, assistindo televisão. É meio difícil confundir.

Entre apresentar sintomas e a pessoa superar a doença ou morrer, são uns 20 dias. Ai você conta quantos estão mortos em cada braço.

Realmente, o único jeito foi não citar nenhum desses 36 estudos. Não há nada de ciência ali. Há apenas um teatro de coisas que parecem científicas.

O abraço dos afogados

Clique para ampliar. Arte sobre foto de Engin Akyurt/Pexels.

“Excelente”, “excelente mesmo”. Elogios públicos, emoção, aplausos e homenagens. Essas foram as reações a um texto que discute tratamento precoce com hidroxicloroquina que precisou, para chegar na conclusão que o autor desejava, ignorar todos os 36 estudos de… tratamento precoce com hidroxicloroquina.

Mas eu os entendo. Para as pessoas que durante toda a pandemia colocaram todas as suas forças para afastar doentes de tratamentos, o texto não precisava ter lógica, ser honesto ou conter estudos científicos. Precisava produzir viés de confirmação. Precisava omitir. Precisava trazer conforto. É um legítimo abraço dos afogados.

E para se agarrarem com unhas e dentes nisso aí, a única conclusão possível é que, para eles, hoje, o assunto já representa algo perturbador.

Eu não queria estar na pele dessa gente.


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