Uma coisa que eu acho bastante surpreendente nos dias de hoje sobre assuntos relacionados à pandemia é que aquelas narrativas mainstream que são repetidas como dogmas pelas pessoas que se consideram inteligentes e bem-informadas – porque se informam pela mídia mainstream, pelos “divulgadores científicos” que a mídia mainstream gosta ou porque têm algum título acadêmico – não se sustentam nem mesmo pelas fontes que são consideradas sérias pelo próprio mainstream. Quer dizer, para refutá-las você não precisa realmente cavar muito fundo ou fazer suas próprias análises (o que requer muito mais tempo e expertise). Basta olhar os resultados publicados nas revistas científicas consideradas confiáveis.

Aqui um exemplo: saiu ontem na Cochrane Library uma atualização da metanálise deles sobre intervenções físicas para interromper ou reduzir a propragação de vírus respiratórios. Deixo o link ao final do post. Nada do que está ali é realmente novo para quem acompanha regularmente as publicações sobre o tema, mas deve surpreender as pessoas que se acham bem-informadas. Sobre máscaras cirúrgicas, a conclusão deles é a seguinte:

“Incluímos 12 ensaios (10 ensaios cluster-RCT) comparando máscaras médicas/cirúrgicas com o não uso de máscaras para prevenir a disseminação de doenças respiratórias virais (dois ensaios com trabalhadores de saúde e 10 na comunidade). O uso de máscaras na comunidade provavelmente faz pouca ou nenhuma diferença no resultado da doença parecida com a gripe (ILI)/doença parecida com a COVID-19 em comparação com o não uso de máscaras (razão de risco (RR) 0,95, intervalo de confiança de 95% (CI) 0,84 a 1,09; 9 ensaios, 276.917 participantes; evidência de certeza moderada). O uso de máscaras na comunidade provavelmente faz pouca ou nenhuma diferença no resultado da influenza laboratorialmente confirmada/SARS-CoV-2 em comparação com o não uso de máscaras (RR 1,01, IC 95% 0,72 a 1,42; 6 ensaios, 13.919 participantes; evidência de certeza moderada). Os danos foram medidos raramente e mal relatados (evidência de muito baixa certeza).”

Traduzindo: as conclusões são baseadas em metanálise de estudos randomizados (RCTs). As máscaras não fazem quase diferença, os resultados não só não tem significância estatística, como as estimativas pontuais de eficácia são muito próximas de zero. Dentre os 12 estudos incluídos, 10 são cluster-RCTs, o que significa que o que é randomizado para usar ou não a máscara não é um indivíduo, mas uma pequena comunidade (cluster). Isso faz com que os estudos consigam avaliar não só o efeito da máscara para o indivíduo que usa, mas para a transmissão na comunidade.

E sobre as máscaras N95 versus máscaras cirúrgicas? Aqui vai a conclusão:

“Agregamos ensaios comparando N95/P2 respiradores com máscaras médicas/cirúrgicas (quatro em ambientes de saúde e um em um ambiente doméstico). Temos muita incerteza sobre os efeitos de N95/P2 respiradores em comparação com máscaras médicas/cirúrgicas no resultado da doença respiratória clínica (RR 0,70, IC 95% 0,45 a 1,10; 3 ensaios, 7779 participantes; evidência de muito baixa certeza). N95/P2 respiradores em comparação com máscaras médicas/cirúrgicas podem ser eficazes para ILI (RR 0,82, IC 95% 0,66 a 1,03; 5 ensaios, 8407 participantes; evidência de baixa certeza). A evidência é limitada por imprecisão e heterogeneidade para esses resultados subjetivos. O uso de N95/P2 respiradores em comparação com máscaras médicas/cirúrgicas provavelmente faz pouca ou nenhuma diferença para o resultado objetivo e mais preciso de infecção por influenza confirmada por laboratório (RR 1,10, IC 95% 0,90 a 1,34; 5 ensaios, 8407 participantes; evidência de certeza moderada). Restringir a agregação a trabalhadores de saúde não fez diferença para os resultados gerais. Os danos foram mal medidos e relatados, mas o desconforto com o uso de máscaras médicas/cirúrgicas ou N95/P2 respiradores foi mencionado em vários estudos (evidência de muito baixa certeza). Um ensaio clínico randomizado anteriormente relatado como em andamento agora foi publicado e observou que as máscaras médicas/cirúrgicas foram não inferiores aos N95 respiradores em um grande estudo com 1009 trabalhadores de saúde em quatro países prestando cuidados diretos a pacientes com COVID-19.”

Resultados novamente sem significância estatística, mas agora com algumas estimativas pontuais de eficácia mais respeitáveis: 30% e 18% para os dois primeiros desfechos considerados. A falta de significância estatística nos diz que há muita incerteza sobre a magnitude desses efeitos, mas há aqui pelo menos um sinal de um efeito modesto, mas relevante. No entanto, para o terceiro desfecho (que envolve confirmação laboratorial da infecção), a direção de efeito se inverteu e o grupo com máscaras se saiu um pouco pior. Isso enfraquece o sinal de eficácia modesta que vemos olhando só para os dois primeiros desfechos.

Quer dizer então que as máscaras não servem para nada? Não é bem isso. Esses estudos consideram a eficácia de máscaras usadas por uma comunidade de pessoas, do jeito que as pessoas usam máscaras no mundo real – abertas dos lados ou sem ajustar bem, sem trocar com frequência, tocando a frente da máscara, abaixando ou tirando em situações às vezes críticas. Provavelmente um indivíduo realmente dedicado e convicto a se proteger o máximo possível, que usa a melhor máscara, perfeitamente ajustada, troca sempre e nunca tira nem abaixa perto dos outros vai obter uma eficácia mais relevante. No entanto, para fins de políticas públicas, é a primeira medida de eficácia (“de mundo real”) que importa e não aquela obtida pelo indivíduo ideal super-dedicado a um uso otimizado.

Adendo: para o indivíduo que faz o uso otimizado, eu perguntaria o que exatamente ele pretende com isso a essa altura do campeonato. Vai fazer isso para sempre? Vale a pena mesmo viver assim para sempre para diminuir um pouco o número de vezes que você vai pegar covid ao longo da vida? Para não pegar covid nunca seria necessária uma estratégia de isolamento muito mais radical – para sempre – não basta apenas usar máscara de forma otimizada.

Fonte:

Physical interventions to interrupt or reduce the spread of respiratory viruses


 

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