* Título e texto atualizado em 14 de abril (ver notas no fim).

Não é a primeira, nem será a última vez que é necessário retirar medicamentos do mercado. 

Nesse caso, o motivo divulgado foi o aumento de trombose, principalmente em mulheres (1)

Para a aprovação de novos medicamentos são necessários estudos clínicos, mas para a suspensão desses não, os dados da vida real são suficientes para a suspensão. Nem sequer é obrigatório a comprovação de causalidade, com o simples fato de suspeitar já seria motivo para suspender (2), pelo menos provisoriamente, realizar estudos e, se descartada a causalidade, voltar a comercializar o fármaco, e se confirmado, manter a suspensão. 

Essa é a recomendação para todos os fármacos novos, mas especialmente importante em intervenções preventivas, como é o caso das vacinas, visto que o risco é real, mas o paciente desfrutará do benefício previsto apenas se contrai a doença. Ou seja, em muitos casos nos que o paciente não contraia a doença ou que não seja uma população de risco para a doença grave, será um risco praticamente puro. Um risco que não poderá ser assumido em prol de um suposto benefício coletivo em intervenções com redução apenas individual de risco, como no caso das vacinas anti-COVID-19, que não reduzem transmissão para a variante ômicron (3)

As recomendações para fármacos novos, além de estarem em livros de epidemiologia clínica, estão explicadas pelo próprio FDA na sua guia de avaliação risco-benefício para a tomada de decisões em matéria de regulação de medicamentos (4).  

Apesar de que para que se aprove a comercialização de um fármaco este deve ser efetivo e seus benefícios esperados devem superar os riscos potenciais para os pacientes (4), na realidade e como a frase citada literalmente da guia da FDA deixa claro, são estimativas. Suposições derivadas de extrapolar os resultados de ensaios clínicos, estudos com alta validade interna, mas baixa validade externa. Ou seja, cujos resultados são precisos e exatos para a população do estudo, mas com baixo grau de confiança para extrapolar os resultados dessa população de estudo à população geral.  

A validade externa será alcançada após a comercialização, quando a população do “mundo real” utilize o fármaco. Pela alta probabilidade de efeitos inesperados ao extrapolar os resultados ao mundo real, classicamente, os fármacos novos são indicados inicialmente à população de maior risco para a doença grave e com escassas alternativas terapêuticas. O exemplo típico, mesmo não sendo o único perfil, seria os pacientes com doença oncológica avançada na que os tratamentos de primeira linha fracassaram. Nesse caso, o benefício esperado supera o risco visto que a alternativa a não tratar provavelmente seja fatal. 

Existem várias maneiras de estimar uma avaliação risco-benefício. O FDA, na sua guia, escolhe uma avaliação qualitativa, o modelo de Framework (4). Este considera as condições do indivíduo/paciente, opções de tratamento, benefícios esperados do novo fármaco, riscos potenciais e riscos inesperados, ou seja, imprevisíveis e desconhecidos. Os riscos devem ser ponderados tanto pela frequência como pela gravidade e probabilidade de sequelas. Ou seja, pondera as evidências, mas também as incertezas existentes.  Acrescenta que a visão geral das conclusões deve integrar o anterior e considerar o contexto clínico do paciente e as suas necessidades não atendidas. Em várias seções descrevem a importância da opinião e participação do paciente na etapa de pós-comercialização (4).  

Na avaliação recomenda-se atuar de maneira conservadora com fármacos novos, escolhendo na avaliação sempre o pior cenário possível de riscos, ou seja, utilizar a frequência mais alta encontrada e não menosprezar os riscos. Também é imprescindível a informação clara e transparente (4), tanto para que os indivíduos confiem no sistema e possam notificar, como para que os profissionais de saúde, instituições governamentais e agências reguladoras possam entender o contexto da aprovação, como para avaliar o melhor contexto de indicação. 

Como citado em outro artigo (5), 14,3% dos fármacos aprovados pelo FDA tiveram sua aprovação baseada em estudos que não alcançaram os objetivos primários. Ou seja, não foi uma aprovação baseada em comprovação de eficácia e segurança, mas que eles defendem que foi por um contexto específico. Esta contextualização da aprovação deve ficar clara tanto para médicos como para pacientes para que as indicações sejam realizadas considerando todas essas limitações e apenas em contextos apropriados. 

Diante de tudo o que foi explicado, não apenas está claro que a vacinação a grande escala, com vacinas novas e que não reduzem a transmissão, não é o mais apropriado como que a suspensão desta não surpreende.

Então porque as mensagens tanto do FDA como da comunidade científica em geral e governos parecem não refletir esses conhecimentos?

Eu não tenho esta resposta, mas proponho uma reflexão. Talvez a maior lição que tenhamos que aprender seja que intimidar e caluniar profissionais e pessoas que tentam informar sobre a possibilidade de efeitos vistos na prática clínica causa muitos prejuízos à saúde pública. 

Prejuízos em vidas, em anos de vida perdidos ajustados à qualidade de vida (pelas sequelas), financeiros pelos tratamentos necessários e limitação ou saída do mercado laboral desses indivíduos. 

E prejuízos secundários à desconfiança gerada depois de que o indivíduo tenha se sentido enganado ou, pelo menos, desprovido do direito de informação. 

Paradoxalmente essas pessoas que serão potenciais responsáveis pela desconfiança gerada, são os que achavam que informar levaria à desconfiança, mostrando inexperiência em ciência e em gestão em saúde.

Mais uma lição: ser mais partícipes e conhecer melhor quem tomará as decisões que nos afetarão e ser mais ativos em solicitar transparência em relação ao contexto dessas decisões e não apenas repetir frases de efeito. 

Seria conveniente revisar se foram eventos realmente não previsíveis nos ensaios clínicos e realizar novos estudos se a causalidade não está clara. Além da necessidade de aumentar a transparência e revisar as denúncias e efeitos de outros fármacos que já não necessitam autorização emergencial. 

Atualização em 14 de abril

Addendum ao artigo: “Qual deve ser o nível de tolerância da comunidade científica aos efeitos secundários de um fármaco novo?” publicado no dia 12 de abril de 2023 em formato digital no site “Médicos pela Vida”.

Confirmo todas as argumentações técnicas no artigo citado. Todas elas têm um embasamento técnico facilmente verificável.

Tal como citado nas referências do artigo, o motivo para essas argumentações foram uma notícia publicada por um grande meio brasileiro (1) e replicada por outros (2-6) igualmente respeitáveis.

No entanto, hoje tive acesso à nota técnica divulgada pelo Ministério da Saúde (7) com data do dia 12 de abril de 2023 e o que a nota orienta é que dará preferência a outros tipos de vacinas à menores de 40 anos. Posteriormente a ANVISA emitiu um comunicado (8) onde confirmou que “Nenhuma das vacinas contra a Covid-19 aprovadas pela ANVISA foi proibida ou desautorizada” assim como o Ministério da Saúde9 na qual afirma que o “Ministério da Saúde reforça que todas as vacinas ofertadas à população são seguras, eficazes e aprovadas pela Anvisa”.

Diante desses fatos escrevo este addedum para que desconsiderem o subtítulo do artigo que era “Entendendo o caso da suspensão no Brasil da vacina contra COVID da AstraZeneca” e manter apenas o título: “Qual deve ser o nível de tolerância da comunidade científica aos efeitos secundários de um fármaco novo? ”. O restante do artigo é coerente com o conhecimento científico e com referências corretas.

Foi um erro replicar a notícia antes de ler o original. A notícia parecia verossímil visto que, pelo motivo divulgado no meio em questão (1), esta vacina foi suspensa em quase todos os países desenvolvidos em 2021 e 2022 (10-19). Uma decisão baseada inicialmente em revisões sistemáticas (20 – 21) e reforçada após avaliação dos dados da vida real.

Assim que era esperável pensar que o Brasil havia aderido aos critérios de segurança dos países desenvolvidos, ainda mais em um contexto onde não há emergência epidemiológica.

 

Referências 1: 

  1. STIVANIN T. Brasil abandona uso e produção da vacina da AstraZeneca contra a covid-19. Publicação online disponível aqui. Acesso em 12 de abril de 2023. 
  2. EE UU ordena retirar un innovador tratamiento contra el cáncer que España acaba de incorporar a la sanidad pública. Publicação online disponível aqui. Acesso em 12 de abril de 2023. 
  3. SHRESTHA LB, FOSTER C, RAWLINSON W, TEDLA N, BULL RA. Evolution of the SARS-CoV-2 omicron variants BA.1 to BA.5: Implications for immune escape and transmission. Rev Med Virol. 2022 Sep;32(5):e2381. doi: 10.1002/rmv.2381. Epub 2022 Jul 20. PMID: 35856385; PMCID: PMC9349777.
  4. FDA. Benefit-risk assessment in drug regulatory decision-making Draft PDUFA VI Implementation Plan (FY 2018-2022). Disponível aqui. Acesso em 12 de abril de 2023.
  5. BUCAR-BARJUD M. Vacinas contra COVID19: muitas interrogações. Disponível aqui. Acesso em 12 de abril de 2023.
  6. JOHNSTON JL, ROSS JS, RAMACHANDRAN R. US Food and Drug Administration Approval of Drugs Not Meeting Pivotal Trial Primary End Points, 2018-2021. JAMA Intern Med. 2023;183(4):376–380. doi:10.1001/jamainternmed.2022.6444.

Referências addemdum: 

  1. STIVANIN T. Brasil abandona uso e produção da vacina da AstraZeneca contra a covid-19. Disponível em: https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/rfi/2023/04/11/brasil-abandona-uso-e-producao-da-vacina-da-astrazeneca-contra-a-covid-19.htm. Acesso em 12 de abril de 2023.
  2. Gómez. VL. Brasil abandona produção e uso da AstraZeneca contra covid-19. Publicação online disponível em: https://olhardigital.com.br/2023/04/12/medicina-e-saude/brasil-abandona-producao-e-uso-da-astrazeneca-contra-covid-19/. Acesso em 13 de abril de 2023.
  3. Lelis R. Brasil ABANDONA PRODUÇÃO e uso de VACINA DA ASTRAZENECA contra Covid-19 por RISCO DE TROMBOSE. Publicação online disponível em: https://portaldeprefeitura.com.br/2023/04/13/brasil-abandona-producao-e-uso-de-vacina-da-astrazeneca-contra-covid-19-por-risco-de-trombose/. Acesso em 13 de abril de 2023.
  4. https://recordtv.r7.com/fala-brasil/videos/brasil-abandona-uso-e-producao-da-vacina-da-astrazeneca-contra-a-covid-19-13042023. Acesso em 13 de abril de 2023.
  5. Brasil abandona uso e produção da vacina da AstraZeneca contra a Covid-19. Publicação online disponível em: Fala Brasil. https://www.youtube.com/watch?v=Wmt-3hIp9xs. Acesso em 13 de abril de 2023.
  6. Granchi G. Por que Brasil deixou de recomendar uso das vacinas AstraZeneca e Janssen contra covid-19. Publicação online disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c9xe0n705z5o. BBC News em São Paulo. Acesso em 13 de abril de 2023.
  7. NOTA TÉCNICA Nº 393/2022-CGPNI/DEIDT/SVS/MS. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/coronavirus/notas-tecnicas/2022/nota-tecnica-no-393-2022-cgpni-deidt-svs-ms/view. Acesso em 13 de abril de 2023.
  8. Nota da ANVISA: Vacinas contra COVID-19. Disponível em:  https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2023/nota-anvisa-vacinas-contra-covid-19. Acesso em 13 de abril de 2023.
  9. Sobre a recomendação de uso da vacina AstraZeneca/Oxford. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/canais-de-atendimento/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/2023/todas-as-vacinas-ofertadas-a-populacao-sao-seguras-eficazes-e-aprovadas-pela-anvisa. Acesso em 13 de abril de 2023.
  10. Sagonowsky E. 7 European countries clamp down on AstraZeneca COVID-19 vaccine as safety worries threaten rollout. Disponível em: https://www.fiercepharma.com/pharma/another-european-country-has-halted-its-astrazeneca-covid-19-vaccine-usage-what-s-going. Publicado em 11 de março de 2021. Acesso em 13 de abril de 2023
  11. Major European nations suspend use of AstraZeneca vaccine. Disponível em: https://apnews.com/article/germany-suspends-astrazeneca-vaccine-blood-clotting-0ab2c4fe13370c96c873e896387eb92f. Publicado em 15 de março de 2021. Acesso em 13 de abril de 2023.
  12. McCArthy N. Which Countries Have Stopped Using The AstraZeneca Vaccine. Disponível em: https://www.forbes.com/sites/niallmccarthy/2021/03/16/which-countries-have-stopped-using-the-astrazeneca-vaccine-infographic/  Publicado em 16 de março de 2021. Acesso em 13 de abril de 2023.
  13. France And Germany Pause Use Of AstraZeneca’s COVID-19 Vaccine. Disponível em https://www.npr.org/sections/coronavirus-live-updates/2021/03/14/976994771/ireland-joins-list-of-countries-pausing-use-of-astrazenecas-covid-19-vaccine. Publicado em 14 de março de 2021. Acesso em 13 de abril de 2023
  14. What happened to the AstraZeneca vaccine? Now rare in rich countries, it’s still saving lives around the world. Disponível em: https://theconversation.com/what-happened-to-the-astrazeneca-vaccine-now-rare-in-rich-countries-its-still-saving-lives-around-the-world-181791.  Publicado em 23 de maio de 2022. Acesso em 13 de abril de 2023.
  15. No plans for UK to order more supplies of AstraZeneca Covid vaccine. Disponível em:  https://www.theguardian.com/uk-news/2022/aug/16/no-plans-for-uk-to-order-more-supplies-of-astrazeneca-covid-vaccine. Publicado em 16 de agosto de 2022. Acesso em 13 de abril de 2023.
  16. Cohrs R. AstraZeneca’s ambitious vaccine dreams are finally, officially dead. Disponível em https://www.statnews.com/2022/05/19/astrazeneca-white-house-contract-canceled/. Publicado em 19 de maio de 2022. Acesso em 13 de abril de 2023.
  17. Ontario will no longer give AstraZeneca COVID-19 vaccine as 1st dose due to blood clot risk. Disponível em: https://www.cbc.ca/news/canada/toronto/ontario-update-astrazeneca-vaccine-1.6022545. Publicado em 12 de maio de 2021. Acesso em 13 de abril de 2023.
  18. Canadá recomienda no usar la vacuna de AstraZeneca en los menores de 55 años. Disponível em: https://www.elconfidencial.com/tecnologia/ciencia/2021-03-29/canada-recomienda-no-usar-vacuna-astrazeneca-menores-55_3013248/. Publicado em 29 de março de 2021. Acesso em 13 de abril de 2023.
  19. AstraZeneca vaccine discontinued in the UK, while concerns over Canadian and Mexico doses continue. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=V5QgFZYTOzA. Publicado em 4 de abril de 2023. Acesso em 13 de abril de 2023.
  20. Sharifian-Dorche M, Bahmanyar M, Sharifian-Dorche A, Mohammadi P, Nomovi M, Mowla A. Vaccine-induced immune thrombotic thrombocytopenia and cerebral venous sinus thrombosis post COVID-19 vaccination; a systematic review. J Neurol Sci. 2021 Sep 15;428:117607. doi: 10.1016/j.jns.2021.117607. Epub 2021 Aug 3. PMID: 34365148; PMCID: PMC8330139.
  21. Bilotta C, Perrone G, Adelfio V, Spatola GF, Uzzo ML, Argo A, Zerbo S. COVID-19 Vaccine-Related Thrombosis: A Systematic Review and Exploratory Analysis. Front Immunol. 2021 Nov 29;12:729251. doi: 10.3389/fimmu.2021.729251. PMID: 34912330; PMCID: PMC8666479.

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