Eu e uma amiga pegamos um uber pra ir à uma festa junina, que existe há 20 anos. O motorista nos diz que mora ali do lado, mas nunca soube da existência dessa festa, e que ontem já havia levado duas meninas para lá. A gente quis saber o que ele faz no tempo livre.

– Olha, pra falar a verdade, não faço muita coisa não. Eu trabalho numa loja e também de uber. Acho que quando a gente vai ficando mais velho, acaba não querendo fazer tanta coisa…

– Mas também, com dois empregos, você deve ficar esgotado né?

– Ah, mas nem é muito por isso… acho que quando você vai ficando mais velho mesmo… e também eu tô com uns problemas. Minha mãe agora tá com uma depressão… e meu tio também teve depressão. Até eu mesmo, também tenho essa coisa de depressão.

– Ah é?

– É uma coisa difícil isso. Eu tive aquelas crises, como que é, de pânico, sabe? Aí tomo remédio. Agora mesmo, só consigo estar aqui com vocês porque tomei o remédio ontem, então estou sob efeito dele.

– É mesmo? E o que você toma?

– Clonazepam, Cloridrato de clomipramina. E agora o psiquiatra entrou com um novo pra ver se ajuda… como que é? Bupi…

– Bupropiona?

– Isso.

– E você toma clonazepam todo dia?

– Todo dia.

– Mas é importante você procurar coisas que gosta pra fazer, sair, ver gente, porque isso de ficar só trabalhando, isolado, isso ajuda muito a ficar deprimido. E esses remédios, é ruim ficar tomando isso muito tempo, vai te fazer mal também.

– É verdade isso, eu queria parar. E já tomo faz quinze anos.

– Quinze anos?

– Sim. Eu já tentei parar, mas acabo voltando. Tentei parar por conta própria.

– Mas você não parou de uma vez né? Tem que diminuir aos poucos.

– É, tem que ir um pouco por vez, né? Eu tentei… mas acho que preciso ir falar com o médico, ver se ele ajuda, falar que eu quero parar…

– Mas às vezes nem os médicos ajudam, muitos acham que não tem problema tomar a vida inteira… e ele te deu ainda um outro remédio agora.

– É verdade…

Logo descemos do carro. A conversa foi mais ou menos assim, e ainda falamos sobre as baladas que ele ia, a amiga dele que é “muito bonita” e que gostava de ir pra noite “beber mesmo, até passar mal”, e que ele levava pra casa e cuidava pra que não fosse assediada. Ele disse ainda que quando encontrava os amigos nos bares, nas baladas, que ninguém acreditava que ele tivesse depressão, porque era sempre bem-humorado, brincalhão e falante.

Não tinha muito que eu pudesse fazer ali, exceto dizer que era muito importante que ele procurasse atividades que dessem prazer a ele, ver os amigos, não ficar só trabalhando. Ele disse que tinha que sair mais mesmo, não ficar só em casa. Ressaltei que não estava falando de ir só para bar, mas que ele podia sair de dia, ir para parques e outros lugares. “É”, ele concordou, “o difícil quando você sai com os amigos e não tá bebendo é que fica chato”.

Sim, fica chato. Em uma cidade em que grande parte da vida social é só nos barzinhos – ouvi isso de algumas pessoas já -, como socializar sem beber? Curiosamente, essa questão não costuma entrar na pauta de nenhum psiquiatra exceto quando estão tratando diretamente de alguém que tem um grave problema de alcoolismo e acabou ali por isso. Mas a questão de um “alcoolismo light”, difundido principalmente entre a juventude, é um tema fundamental. Um dia a gente volta a ele por aqui. No que se refere ao nosso querido motorista, fica evidente que a decisão de parar de beber é um fator a mais que pesa para acabar com sua vida social – ou se tornar babá de sua “amiga muito bonita” que bebe até passar mal.

A história do nosso colega é o retrato de uma trajetória muito comum. Tenho certeza que você que está lendo, se não tem uma história parecida, conhece alguém que tem. Não tenho como saber o que aconteceu com ele lá atrás, mas o que o levou ao psiquiatra foram episódios de pânico. É algo horrível: sensação de morte iminente, taquicardia, suor, falta de ar, angústia, medo. É sentir no corpo um mal-estar que está ali, arraigado, e não encontra por onde sair. Explode em um momento de desespero completo. Ninguém quer sentir isso de novo.

Um sintoma que é a cara do nosso tempo, como costumam ser os sintomas psíquicos em geral. A manifestação corporal do pânico, a meu ver, pode ser pensada em uma analogia com os sintomas corporais histéricos que eram tão frequentes no século XIX e início do XX, e que hoje não são tão encontrados. Naquela época, da mesma forma que faz maioria dos médicos hoje, não se via sentido algum por trás dos sintomas: eram tratados como entidades autônomas, arbitrárias quase, que vinham e se apossavam dos pacientes. Barbitúricos eram populares para acalmar os sintomas de um “ataque histérico” como hoje são ainda mais os ansiolíticos para os ataques de pânico que “vem do nada”. É o caso do nosso motorista, que utiliza regularmente o clonazepam (mais conhecido pelo seu nome comercial de Rivotril), um medicamento da classe dos benzodiazepínicos. Voltaremos a ele.

A questão é que se tratam sintomas como se não tivessem sentido, como se fossem um fenômeno avulso que acomete um corpo sem nenhuma explicação. Assim foi tratado nosso motorista, que foi a um psiquiatra e recebeu medicações – uma abordagem bioquímica para um problema supostamente bioquímico. Não foi dada a ele a possibilidade de falar sobre o seu sofrimento e atribuir um sentido ao seu sintoma, entender que aquela manifestação somática, ou psicossomática, expressava um sofrimento latente. Sobre o qual era necessário falar, entender, pensar. Dar um destino que não fosse a crise de pânico.

Custo a crer que é necessário argumentar em favor de uma concepção que acredito que deveria ser auto-evidente a essa altura: a de que os ataques de pânico – como tantas outras expressões sintomáticas, tais como fobia, acessos de raiva, apagões, delírios, etc. – são expressões de questões psíquicas. E que não basta tratar o sintoma sem abordar aquilo no qual se origina. O psicólogo Enrico Gnaulati endossa essa visão e afirma nesse texto – debatendo o estrondoso aumento de buscas em relação a ataques de pânico e seu tratamento no Google durante a pandemia – que sua experiência clínica demonstra que ataques de pânico podem ser consequência de ansiedade de separação, episódios de raiva reprimidos ou a impossibilidade de auto-agenciamento (viver sua vida como se fosse objeto da intenção de outros).

Ou seja, o que ele diz é que há um sentido a ser decifrado no pânico, e não apenas sintomas físicos que devem ser amenizados. Eu diria, inclusive, que há muito mais possibilidades de sentidos, e que só podem ser descobertos se permitimos sua exploração, uma escuta clínica, e não sua tamponação por meio de medicamentos e técnicas de relaxamento comportamentais. Interpretando esse fenômeno, Gnaulati diz:

A facilidade e confiança com a qual muitos clientes assumem que estão propensos a ataques de pânico reflete tendências culturais mais abrangentes truncando e emoldurando o sofrimento humano em termos medicalizados. Eu não estou propondo que técnicas cognitivo-comportamentais e medicações não têm um lugar no tratamento de ataques de pânico. O que estou propondo é que o manejo dos sintomas deve ser considerado um ponto de partida, e não um ponto de chegada, do tratamento.” (1)

Ou seja, não ignorar que o sintoma nos diz algo. E não proceder a uma medida de, como ele aponta, citando o professor de psicologia Michael Karson, “desativar o alarme antirroubo em vez de lidar com o ladrão”.

E há quinze anos atrás, foi isso que foi feito como nosso caro motorista: propuseram lidar com os sintomas dele, administrando drogas tóxicas, em vez de lidar com o que havia por trás de seus sintomas, fazendo com que não apenas se “desativasse o alarme” dos ataques de pânico, mas sim que ele pudesse lidar com as questões muito mais significativas do que estava acionando tal alarme.

O clonazepam, ou Rivotril, é um medicamento ansiolítico, da classe dos benzodiazepínicos. Eles se popularizaram nos anos 1950, sendo livremente utilizados e aclamados, até que, no final dos anos 1970 até mesmo o Senado dos EUA e o Gabinete da Casa Branca sobre a Política Nacional de Controle de Drogas concluíram que os seus efeitos duravam no máximo quatro meses, e uma audiência no Senado estadunidense afirmou que os benzodiazepínicos tinham “produzido um pesadelo de dependência e vício, ambos de tratamento e recuperação muito difíceis”. (2)

Mas, como tudo que é passível de gerar lucro no mundo da medicina, os benzodiazepínicos voltaram a ser emplacados com muita publicidade e a ajuda dos “prescritores” (como a indústria costuma se referir aos médicos). Em 2008, aproximadamente 5,2% dos adultos entre 18 e 80 anos nos EUA fizeram uso de benzodiazepínicos. (3) As mortes devido a seu uso também dispararam, passando de 1.000 por ano em 1999 para mais de 11.000 em 2017, de acordo com a pesquisadora Rebecca McDonald, do King’s College de Londres. (4)

Contudo, a eficácia das benzodiazepinas é duvidosa, além dos significativos efeitos adversos. Em 1991, pesquisadores britânicos afirmaram que o curto período de sua eficácia (em uma semana seus efeitos passam a ser equiparáveis aos de um placebo) ocorre às custas de um funcionamento cognitivo e psicomotor prejudicado, bem como uma amnésia verificável em todas as drogas desse tipo. (5)

A ideia de indicar a utilização desse medicamento de forma contínua, como foi feito pelo psiquiatra que atendeu o nosso motorista, ou como ocorre com milhões de pessoas mundo afora, é simplesmente criminosa. Vocês lembram que na conversa ele disse que tentou algumas vezes parar seus medicamentos, não é? Pois bem, muito provavelmente o principal motivo para ele não ter conseguido é a síndrome de abstinência do clonazepam – algo cujo risco certamente não foi indicado a ele quando o médico falou para que tomasse esse medicamento todos os dias.

Os primeiros relatos de dependência de benzodiazepínicos na literatura científica apareceram em 1961 – há mais de cinquenta anos! As investigações posteriores alertaram unanimemente para a “ansiedade de rebote”, ou seja, os pacientes que paravam de tomar o remédio aumentavam a sua ansiedade. Um estudo de 1981 afirmou que:

A ansiedade aumentou agudamente durante a retirada, ao ponto de chegar ao pânico em diversos pacientes. Comumente, os pacientes experimentava sintomas corporais de ansiedade, tais como sensação de sufocamento, boca seca, calor e frio, pernas bambas, etc. Diversos se tornaram irritáveis e alguns reclamaram de sentimentos desagradáveis de despersonalização e desrealização.” (6)

Ou seja, os sintomas de pânico sentidos pelo nosso motorista podem ter sido agravados e perpetuados pelo… remédio prescrito para tratar seu pânico.

O cloridrato de clomipramina, a segunda droga prescrita, é um antidepressivo da classe dos tricíclicos. Os tricíclicos possuem diversos efeitos adversos como boca seca, constipação, sonolência, impotência, entre outros. Para não nos alongarmos muito, vamos deixar uma abordagem mais profunda desses remédios para outra ocasião.

Mas fiquemos aqui com a seguinte reflexão: a jornada de nosso caro motorista pelo mundo da psiquiatria veio com ataques de pânico, que, não sendo investigados em suas causas, foram tratados com remédios. Após um longo tempo de uma melhora atribuída aos remédios, um novo momento de dificuldade (muito possivelmente desencadeado pelo isolamento, excesso de trabalho e adoecimento da mãe) levaram a que o psiquiatra receitasse um novo antidepressivo, a Bupropiona, que se agregou à sua crescente farmácia diária, com todos os seus efeitos colaterais e custos para a saúde.

Essa história é extremamente semelhante à de Rose Y., que descreveu nesse artigo como um ataque de pânico a levou ao consultório de um psiquiatra e daí em diante ela entrou em uma espiral de medicamentos por 15 anos, passando por antidepressivos, ansiolíticos, antipsicóticos, estabilizantes de humor… todo o “arsenal” da psiquiatria moderna. Ao decidir sair das drogas, ela acabou encontrando a obra de Peter Breggin, psiquiatra crítico dos psicofármacos, e um grupo de apoio no Facebook chamado “beating benzos” (derrotando os benzodiazepínicos), onde 5.000 pessoas discutiam como largar os medicamentos, e centenas de pessoas relatavam histórias semelhantes à sua. Ela disse:

Pela primeira vez em mais de uma década, eu não me senti sozinha. E tão importante quanto, agora eu tinha 100% de confiança que a fonte de meus sintomas permanentes eram as medicações psiquiátricas que eu tinha tomado por anos.” (7)

É difícil saber o que prejudica mais o nosso motorista: que suas crises de pânico não tenham sido destrinchadas como sinais e tratadas terapeuticamente no primeiro momento; que a resposta tenha sido um combo de medicações tóxicas; que essas medicações tenham sido mantidas por quinze anos; ou que tenham convencido ele de que são estas drogas que o salvaram de um destino ainda pior, e que ele deve mantê-las e somente seu psiquiatra saberá o que é melhor para a sua saúde mental. Como disse Joanna Moncrieff:

Se as pessoas acreditam que é a química cerebral que as tornou deprimidas e que eles apenas melhoraram porque uma droga as ajudou a retificar um defeito ou desbalanceamento químico, então estão propensas a temer a recorrência da depressão a cada período difícil de suas vidas. Adicionalmente, não estão inclinados a reconhecer as coisas que fizeram para ajudar a si mesmos a sair da depressão, pois atribuem sua recuperação a uma droga. Se, em contraste, eles tivessem conseguido passar pelo período sem tomar uma droga que achassem que arrumou sua bioquímica, teriam tido uma experiência de auto-eficácia que poderia ter construído sua confiança e os ajudado a enfrentar problemas futuros com maior força. Eu sei que a maioria dos médicos e profissionais da saúde querem ajudar as pessoas a se ajudarem a superar a depressão dessa forma. O que eles falham em perceber é que toda prescrição que emitem contém uma mensagem de desesperança e impotência. Toda vez que recomendam antidepressivos eles contradizem a mensagem que deveriam reforçar sobre a habilidade dos seres humanos de superar a adversidade.” (8)

Esperemos que o nosso motorista consiga recobrar sua confiança em sua autonomia e superar a dependência longamente cultivada em drogas que aumentam seus sintomas já difíceis. Que consiga construir o tortuoso caminho pra se emancipar de seu longo cativeiro farmacológico e psíquico, recobrando a agência sobre sua própria saúde. E que, com sorte, esse texto possa ajudar a jogar alguma luz sobre essas questões tão importantes.

Publicado originalmente em seu substack.


1 – Enrico Gnaulati. Lessons from the Pandemic: Panic Attacks Are Not Random. Mad in America. Disponível em: https://www.madinamerica.com/2021/06/pandemic-panic-attacks/

2 – Robert Whitaker. Anatomia de uma epidemia. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2017. p. 141.

3 – Olfson M, King M, Schoenbaum M. Benzodiazepine Use in the United States. JAMA Psychiatry. 2015;72(2):136–142. doi:10.1001/jamapsychiatry.2014.1763. Disponível em: https://jamanetwork.com/journals/jamapsychiatry/fullarticle/2019955

4 – https://www.newscientist.com/article/2230379-benzodiazepine-prescriptions-reach-disturbing-levels-in-the-us/

5 – Robert Whitaker. op. cit., p. 143.

6 – Petursson H, Lader M H. Withdrawal from long-term benzodiazepine treatment. Br Med J (Clin Res Ed) 1981; 283 :643 doi:10.1136/bmj.283.6292.643. Disponível em: https://www.bmj.com/content/283/6292/643

7 – https://www.madinamerica.com/2020/07/one-panic-attack-led-15-years-psychiatric-drugs/

8 – Joanna Moncrieff. The Myth of the Chemical Cure. A Critique of Psychiatric Drug Treatment. Palgrave Macmillan, 2009. p. 172-173.


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